CRÔNICA

Mochila de marinheiro - Por Luis Cosme Pinto

“Marinheiros do mesmo barco”. Este é o grito de guerra de uma amizade de 40 anos. A amizade de Vicente e Petrônio

Estrada.Créditos: Pxhere
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“Marinheiros do mesmo barco”. Este é o grito de guerra de uma amizade de 40 anos. A amizade de Vicente e Petrônio.

Vicente está na formatura do afilhado e Petrônio me chama pra conversar.

- É papo de marinheiro - avisa.

Ele, quase “almirante”. Eu, “aprendiz de marujo”

Antes de falar do Vicente, Petrônio explica a frase, como se precisasse.

- A gente tá no mesmo barco, quer dizer: juntos pro que der e vier. Por pior que seja a crise, quando ele me fala, “e aí marinheiro?”, tudo melhora. Porém, os últimos tempos testaram o coração dele.

- Por quê?

- Vicente e Valquíria só tiveram a Pâmela. Um xodó, precisa ver. Há três anos, quando o Vicente ainda era metalúrgico, ela passou para Psicologia.

- E qual o problema?

- No ano passado, no aniversário de 23 anos, Pâmela falou na lata: ia abandonar a faculdade. Não se empolgava com as matérias e não se via como psicóloga.

Petrônio, que é despachante, limpa os óculos, pede torresmos para acompanhar a cerveja e segue com o drama da família.

- Pâmela avisou que ia ficar um ano longe do Brasil. Seria mochileira, dessas que acampam, pegam carona, vendem artesanato.

- E os pais?

- A Valquíria gritou: “hippie em pleno século XXI?” e o Vicente resmungou: “E o financiamento que fizemos pra pagar a faculdade?”

Petrônio tritura, ruidosamente, o primeiro torresmo.

- A Pâmela pegou um copo de água pra cada um e explicou como se ela fosse a mãe e eles os filhos: “Meus amores, eu já decidi, vou no fim do mês. Quero conhecer a nossa América. A América do Sul. Tenho cinco mil reais guardados do estágio e comprei a passagem. No verão que vem eu volto. Vou ser feliz, não é isso que vocês querem?”

- Qual foi a reação?

- Os três choraram abraçados.

Também provo o torresmo. O “marinheiro” Petrônio ganha fôlego.

- O Vicente me encaminhou as trocas de mensagem com a filha, que já tem nas costas dez meses de mochila e milhares de quilômetros.

- Pai, eu ia para La Paz com o meu novo namorado, o Hector, que é malabarista. Aí ele foi chamado para se apresentar num circo no Peru. Então, seguirei sozinha pra Bolívia. Vou de carona.

- Pâmela, pega um ônibus.

- Pai, de boa, vou de caminhão.

-Você quer provar o quê, filha?

- Nada. Não quero provar nada.

- Filha, minha vontade é embarcar agora e te trazer de volta.

- Pai, essa é a minha viagem.

Petrônio mostra outra mensagem escrita pela Pâmela para o Vicente.

- Pai, deu tudo certo. Os mochileiros usam aplicativo de carona. Então, a gente vai com caminhoneiros conhecidos. Comprei sanduíches em dobro e dividi com o motorista. O Inácio foi tão legal e ficou tão agradecido pelos sanduíches de presunto que me convidou pra ir até a casa dele.

Vicente se indignou.

- Sozinha na casa de um desconhecido, filha. Eu te criei com tanto amor! Pra que isso? Me diz, pra quê?

Na mensagem seguinte foi como se Pâmela, abrisse uma caixa de calmantes. Petrônio segue na leitura.

- Ei paizão. O Inácio, o caminhoneiro, não ia me estupar kkk. Ele queria me apresentar à família. Inácio é casado, tem duas filhas fofas. Eu fiz pulseiras de macramê pra elas e pra mulher dele, a Carmen. Ela me retribuiu com um vestido. A família tem vontade de conhecer o Brasil e te dar um abraço.

Petrônio faz uma pausa, me olha sério.

- Naquele dia eu e Vicente combinamos de conversar. Nunca tinha visto meu melhor amigo daquele jeito. Uma mistura de desespero com a insegurança da filha e, ao mesmo tempo, a sensação de que lá longe, numa estrada qualquer de uma montanha gelada, nascia uma mulher. Uma mulher sem medo da vida. Uma adulta que sabia se virar. Tinha mais orgulho que medo naqueles olhos molhados do “marinheiro”.

Petrônio me conta outra conversa com Vicente.

- Ele disse: “Depois da Bolívia, Chile e Peru, minha filha chegou ao Equador. Tinha marcado encontro com o malabarista. Chovia muito e como a Pâmela só vende o artesanato na rua, não pôde trabalhar. Aí o dinheiro acabou. Então, no mercado municipal do vilarejo, pediram comida. Você imagina a minha tristeza? Minha filha passando fome, se humilhando? Aquela que ia ser doutora.

Petrônio esvazia mais um copo e conta, que na falta do que dizer, repetiu: ”somos marinheiros do barco”. Vicente desabafou.

- Tudo sempre foi contado em casa, mas nunca faltou comida. Daí ela me fala desse sufoco num lugar que a gente nem sabe onde é. Olha a mensagem dela no celular.

Petrônio lê.

- Meu melhor pai do mundo. A gente se aproximou de duas indígenas, que vendem no mercado municipal o que plantam. Expliquei que aceitava algum legume, passado mesmo. Então, deram o que iria pro lixo. Cortei a parte estragada e aproveitei o resto. Como a gente tinha farinha no acampamento, peguei um ovo emprestado e fiz torta de legumes. A gente comeu e ainda levou pra elas. No dia seguinte, também de chuva forte, me deram berinjela, eu fiz uma torta duas vezes maior . Outras indígenas almoçaram com a gente.

Pâmela escreveu ainda mais.

- Pai, a gente matou a fome um do outro sem nenhum dinheiro envolvido, só na fraternidade, entendeu? Agora, o tempo melhorou, vendemos algumas pulseiras e até uma gargantilha. Aprendi um ponto novo de macramê para fazer bolsas. Quem me ensinou foi Miguel, um artesão venezuelano. Em troca, dei três aulas de português a ele.

Vicente respondeu a mensagem com 15 corações vermelhos.

- Daqui a pouco tô de volta. Obrigado por acreditar em mim.

Petrônio guarda o celular.

- O Vicente me contou que a Pâmela chega em um mês. Vem com a Fernanda, que conheceu na Amazônia Peruana.

- Como ele reagiu?

Petrônio pigarreia.

- Você não vai acreditar. Empolgadíssimo, o Vicente também quer uma viagem assim, sem destino. Embarca daqui a uns meses, depois de matar saudade da Pâmela.

- Marinheiro e mochileiro?

- Pois é. A Valquíria, a mulher dele e mãe da Pâmela, avisou que não vai. Aí, ele me convidou.

- E você, Petrônio?

- Aceitei. Metade porque quero me aventurar como a Pâmela. Metade porque somos marinheiros do mesmo barco.

Petrônio paga parte da conta e sai. Vai pesquisar o preço de uma mochila bem grande no centro de São Paulo.

*Luis Cosme Pinto é autor de Birinaites, Catiripapos e Borogodó, da Kotter

**Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.