OPINIÃO

08/08/08 - Por Luis Cosme Pinto

De 4 em 4 anos, adversários se abraçam e a gente acredita que o mundo pode melhorar: é o Espírito Olímpico

Olimpiadas de Pequim.Créditos: Gilson Dias
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É como medalha olímpica, quem conquista exibe no peito. Para o atleta é a glória de uma vida. Já para o jornalista esportivo o orgulho é um pedaço de papel plastificado: a credencial, que permite acompanhar as competições olímpicas.  O crachá, com foto e logotipo dos jogos, costuma ir pra parede de casa, que nem diploma.

Tenho alguns colegas que aturam, com espírito olímpico, chefe chato, salário baixo e horário ruim, porque de 4 em 4 anos têm a esperança de ver de perto quem sobe no pódio.  

Dei sorte de cobrir 2 Olimpíadas, a de Pequim, capital da China, foi a primeira. Porém, a TV não tinha os direitos de transmissão. Isso quer dizer que eu e 5 colegas - formávamos 2 equipes de reportagem - não podíamos entrar nos locais de competição, nem cobrir as coletivas ou mostrar as premiações. 

Parece frustrante. E é. Ao mesmo tempo, conhecer a China com sua cultura e contradições é um presente para qualquer jornalista. E a Olimpíada já era notícia antes de começar.

Chineses são atentos aos números e 8 simboliza prosperidade. A abertura dos Jogos de 2008 foi marcada para o dia 08/08/2008.

E mais: a China programou a festa para as 20:08 minutos com a participação de 2008 percussionistas e o rufar de seus 2008 tambores. Prosperidade confirmada, os donos da casa terminaram em primeiro lugar.

Não vimos quase nenhuma competição e tampouco entendíamos uma sílaba em mandarim, mesmo assim, assunto não faltou.

Tudo era novo e interessante naquela terra tão diferente. Durante 40 dias mostramos ao Brasil o modo de vida dos chineses, a superlotação do transporte, o controle de natalidade, a história da Muralha da China. Também curiosidades como a incrível quantidade de bicicletas, os salões de beleza que faziam pé, mão e massagem ao mesmo tempo e os restaurantes que ofereciam peixe vivo num balde para o cliente escolher qual deles iria almoçar.   

Trabalho de tirar o sono. Com o fuso horário de 12 horas, a redação em São Paulo nos telefonava às 16 horas no Brasil, 4 da manhã em Pequim, para saber o que tínhamos gravado e sugerir assuntos. 

Muitas vezes, os colegas no Brasil imploravam, sem se importar com o tamanho e o peso das encomendas. 

- Soube que a caixa de uísque com 12 garrafas custa menos de 80 dólares, traz uma, vai.

- Verdade que aí tem aquela TV a pilha de botar na cozinha?

- O Leo vai fazer 10 anos, sabe aquele vídeo game?

- A Gislaine precisa de um quimono de seda.

A gente fingia que não entendia e mudava de assunto. Víamos na prática que alguns produtos da China eram bastante resistentes, ou não. Um dos cinegrafistas usa as camisetas coloridas, compradas nos mercados de Pequim, até hoje. Outro viu a bolsa de uma grife francesa, presente de casamento para a mulher, se desmanchar depois de alguns meses. Era pirata, a danada.

De repente, o Brasil começou a ganhar medalhas e nos desesperamos porque a concorrência entrevistava os campeões ao vivo, enquanto a gente sofria do lado de fora. Até que a sorte ajudou: encontramos o judoca vencedor no meio da rua, o nadador

Cesar Cielo no hotel em que os pais estavam hospedados e a recordista Maurren Maggi em evento público.

Se a gente não podia ir à Olimpíada, a Olimpíada vinha até nós. Acontece.

Então, o acaso abusou. Como qualquer lugar do planeta, Pequim tem muitos brasileiros. Um deles era dono de churrascaria e foi personagem de uma de nossas reportagens. Dias depois, nos telefonou com uma informação preciosa: a seleção feminina de vôlei, que ia disputar a final, queria comemorar lá a possível conquista do ouro. Deu certo. Só nós sabíamos e gravamos com exclusividade nossas campeãs, que dançaram, comeram picanha, riram e choraram até 7 da matina.

No Brasil, a redação comemorou a reportagem. Pra nós foi quase uma medalha. 

Porém, a adversária mais difícil, inexpugnável de verdade, resistia: a língua. Um colega viu escrito em mandarim, na lousa de um restaurante, o conjunto de palavras. “É o prato dia,” concluiu, baseado na experiência do Brasil. O gerente  falava inglês e ele caprichou na pronúncia “The dishe of the Day, please”( o prato do dia, por favor ). Como o homem não entendeu, ele mostrou num pedaço de papel as palavras copiadas da lousa. O gerente pegou da mão dele e riu, os garçons gargalharam e até o cozinheiro largou as panelas para entrar na farra. A gente se entreolhava com a cegueira dos ignorantes.

Até que Lidia, nossa intérprete, que arrastava o mandarim com sotaque gaúcho, explicou. A frase não era o prato do dia e sim uma oferta de trabalho. 

PRECISA-SE DE GARÇOM, PREFERÊNCIA PARA QUEM MORA NO BAIRRO E JÁ TEM EXPERIÊNCIA NO SERVIÇO.

Aí, foi a gente que deu risada. 

16 anos depois, ao ver a festa em Paris, relembro a aventura em Pequim. A comunhão brasileira e chinesa naquela mesa do modesto restaurante nos mostrou que o espírito olímpico vai muito além das quadras e pistas, das vitórias e derrotas. 
 

*Luis Cosme Pinto é autor de Birinaites, Catiripapos e Borogodó, da Kotter
**Agradeço aos amigos-medalha-de-ouro Flávio Salgueiro e Gilson Dias