Somos modernos, contemporâneos ou pós-modernos? A expressão “moderno”, circunscrita ao terreno das artes, confunde-se com a Semana de Arte Moderna, e invoca personagens como Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Anita Malfatti, e etc. Todos estudamos a Semana de 1922 como um marco do modernismo no Brasil, e tal corrente artística e literária, inspirada pelo clima europeu da época, propunha-se a romper com padrões formais da arte, da literatura, da poesia.
E, talvez, seja este zeitgeist modernista que tenha construído a rede de significados que permeia o uso corriqueiro da palavra “moderno”, que significa o novo, o contemporâneo, que se confunde com o conceito estatístico de “moda”, que é a repetição de um mesmo fato, roupa ou tendência. Uma pessoa moderna costuma trajar-se de acordo com as tendências de seu tempo de seu contexto, de sua cidade, e ela deixa de sê-lo no momento em que não acompanha esse ritmo de intensas mudanças. Aquilo que é moderno não necessariamente está preso no tempo e no espaço, porque a moda pode ser “retrô”, a moda pode ser vestir-se com acessórios “das nossas avós” adquiridos em briques e brechós. Dessa maneira, o suco corriqueiro da expressão “ser moderno” confunde com ser contemporâneo, ou “estar alinhado”.
Nas Ciências Sociais e na Filosofia, a idéia de modernidade apresenta-se de uma forma mais restrita a um período no tempo e no espaço e a um determinado modus operandi daquilo que chamamos de “sociedade moderna”, ou como diz um grande pensador da modernidade, o sociólogo inglês Anthony Giddens:
“O que é modernidade? Como uma primeira aproximação, digamos simplesmente o seguinte: modernidade refere-se a estilo, costume de vida e ou organização social que emergiram na Europa a partir do século XVII e que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua influência” (Giddens 1991)
Giddens observa a modernidade como um conjunto de relações econômicas e sociais que surgiram com o iluminismo, a democracia e o fortalecimento dos Estados nacionais, que teriam proporcionado aquilo que Boaventura Sousa Santos (2000) considera o casamento do Estado nacional capitalista e da ciência moderna. Este casamento foi bastante acelerado pela Revolução Industrial e científica, em especial nos séculos XVII e XIX. Giddens situa a modernidade como o advento de uma sociedade pós-tradicional, pela transformação nas relações sociais, nos laços comunitários e de parentesco, no esquadrinhamento do tempo e do espaço. O tempo é o tempo da evolução científica e tecnológica, o espaço é o espaço das cidades. As instituições modernas, ou disciplinares, como diz Foucault, vão predominar nos modos de existência. O Homem Moderno mede seu tempo pelas horas de trabalho e de lazer, a criança moderna passa a maior parte do seu tempo na escola, os doentes modernos submetem-se aos médicos e hospitais.
A própria sociologia é uma ciência moderna, por ser fundamental estudarmos os mecanismos aos quais nossas relações de tempo, espaço, trabalho e subjetividade estão submetidas. Para um grande sistema moderno, é necessário construirr uma grande teoria que o explique, como as leis da gravitação de Newton impulsionaram a revolução industrial tecnológica, as grandes teorias de Marx, Weber, Durkheim e Parsons impulisionaram a revolução industrial das ciências humanas.
É o Estado moderno que organiza, que faz o tempo correr, que cura as doenças e aplaca os conflitos. No entanto, as grandes guerras do século XX e a produção em massa de pobreza anos paises do terceiro mundo ao longo do século XX e dos países Europeus dos anos 1990 até hoje colocaram a modernidade em xeque. O Estado, visto como fator inclusivo e porto seguro da subjetividade, começou a mostrar-se violento e ambivalente. Zigmunt Bauman chega a colocar a modernidade como um monstro ambivalente, considerando Adolph Hitler como uma espécie de grande atrator moderno: seus ideais de pureza racional e ordem seriam a exacerbação dos ideais da modernidade.
A inclusão, a igualdade, o desenvolvimento movidos por uma “Sociedade” que se sobrepõe e se antagoniza aos “indivíduos”. Os loucos precisam ser curados no manicômio, é preciso, os alunos precisam ser disciplinados na escola. A diferença é vista como anomalia. Os turbulentos anos 60, década de efervescência e questionamento das prisões espaço-temporais-tecnológicas, pelo surgimento de pensadores críticos e absolutamente transdisciplinares, como Feliz Guattari, Gilles Deleuze, Michel Foucault.
A subjetividade desejante, para estes atores, é um conflito de forças com o que poderíamos chamar de “social”, o sujeito resiste ao poder instituído, ele demanda mais do que boas relações e organização social. Em tempos de crise identitária e técnica, na inversão da lógica “social-individual” na relativização das dicotomias, autores como David Harvey e François Lyotard, entre outros, chegam a discutir a possibilidade de uma pós-modernidade: o fim do Estado e da sociedade, e consequentemente, da possibilidade de compreendê-los em um sistema teórico compreensível.
Dentro da sociologia, por questões corporativas (sem sociedade não é possível fazer sociologia), há grande resistência ao termo “pós”. Afinal, o Estado moderno realmente não acabou, a existência moderna tampouco deixou nosso horizonte subjetivo, a democracia, especialmente em tempos de eleições, não deixa de clamar pelo Estado responsável por saúde, educação, segurança e emprego. Nos países do terceiro mundo, o Estado moderno é muito forte, porém de curto alcance, e às vezes apenas sua parte mais violenta é sentida especialmente pelas populações mais pobres, pois são os pobres quem apanham da polícia do Estado moderno, que frequentam suas precárias instalações escolares e de saúde e habitam as favelas, que são os restolhos das políticas de habitação modernas. Como um cadeado de ferro em uma choupana infestada de cupins, a modernidade espreme os sujeitos, excluídos em um sistema de exclusão.
Tais contradições e efeitos funestos e contraditórios levaram alguns sociólogos a pensar com Giddens que vivemos “as consequências da modernidade”, ou que esta modernidade em tempos de globalização é uma “modernidade tardia” e que o descentramento do papel do Estado e a emergência das redes sociais, ou mesmo da subjetividade não mais como efeito da socialização, e sim a sociedade como efeito da subjetivação sejam características de uma modernidade “líquida”, em oposição à velha modernidade “sólida”.
Bruno Latour, nos anos 1970, produziu uma obra revolucionária e polêmica chamada "Vida de Laboratório" que deu início a mais elaborada aventura em um dos cânones sagrados da chamada modernidade: a ciência. Latour inaugura uma nova modalidade metodológica que consiste na observação etnográfica metódica dos laboratórios, o que implica em analisar não somente os métodos, a produção científica e a "epistheme", mas também as práticas científicas como redes simétricas entre atores: aparelhos, cientistas, financiamento, publicações, imprensa, economia. Tais redes não são parte de uma sociedade pré-dada, e sim estados emergentes e que demandam estabilidades e instabilidades para se manter como "fatos científicos".
O total desnudamento das práticas científicas levou Latour a produzir seu famoso ensaio de título bombástico "Jamais fomos modernos" considerando como "modernos" pessoas que deliram e alucinam com a possiblidade de existir uma ciência "fria" "impessoal" "infalível" e "majestática". Latour, ao ingressar radicalmente no laboratório e mergulhar nos rituais e nas práticas cotidianas, tornou-se um crítico ferrenho da ciência, porém sem negar sua materialidade como fazem alguns desconstrucionistas. A ciência moderna é apenas humana, demasiado humana.
Nas últimas duas décadas a bifurcação da realidade das redes sociais e o negacionismo científico que culminou na pandemia forjaram um conflito epistemológico inédito: o lema “obedeça a ciência” tornou-se um imperativo categórico que, ainda que nos proteja de movimentos antivacina e terraplanista, tal imperativo obscurece as críticas aos modelos cientificistas hegemônicos e culmina em radicalismos como os de Natália Pasternak, bióloga que ganhou grande visibilidade na Rede Globo pelos seus ataques ao bolsonarismo e pelos ataques simplistas e virulentos a psicanálise.
Nós, os contemporâneos, modernos, pós-modernos, recentes, tardios, líquidos, sólidos vivemos esse impasse, e creio que Bauman acerta quando diz que a modernidade é ambivalente: sonhamos com a individualidade, mas entramos de cabeça na coletividade midiática ou dos padrões de consumo, sonhamos com um futuro de paz e igualdade, mas somos todos radicalmente diferentes e a todo tempo entramos em conflito.
A minha posição enquanto pesquisador e professor universitário também é ambivalente, penso que a subjetividade contemporânea, de quem vive em uma cidade e está acoplado a redes e padrões de trabalho, consumo de cultura, alimentação e saúde, é uma subjetividade constituída por uma rede, e está em rede. Somos a interface entre o coletivo e o individual, entre a clausura e a abertura. Na rede em diferentes níveis de consciência, somos individuais e coletivos, somos atores e platéia, sólidos, líquidos e gasosos. A modernidade parece ser o algoritmo que estrutura nossa experiência de urbanitas, e a pós-modernidade, o princípio da conexão e da atualização.
*Fabio Dal Molin é psicóologo, psicanalista, professor da FURG e pós-doutorando do PPG em Psicanálise, Clínica e Cultura da UFRGS
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum