Durante o ano de 2022 organizei o curso de extensão “O Brasil no mundo de 2020” com o intuito de, às vésperas da eleição mais beligerante da história recente de nosso país, tentar produzir algum tipo de racionalidade analítica a partir dos inúmeros cientistas políticos que se aventuraram a explicar um fenômeno social mundial multifacetado e complexo, mas ao mesmo tempo sólido e inexorável, que deu origem ao Bolsonarismo, ao Trumpismo, ao negacionismo e outros “ismos”.
Os cientistas chamam de democracia iliberal, neofascismo, partido digital, nova extrema direita, fascismo aquele fenômeno que integra massas ciborgues simbiontes entre smartphones, redes de wi fi, aplicativos de celular e multidões de carne e osso absolutamente fiéis e fanáticas pela figura de um líder que emulam com quase perfeição as massas pensadas por Freud há quase exatos cem anos. A identificação massiva e os laços de afetos de horror, amor e medo sublimados criam círculos concêntricos de cumplicidade, camaradagem incondicional e amor intenso por um líder idealizado, que apesar de não passar de um ex-militar estúpido e fracassado, é visto como um messias, salvador da pátria, imbroxável.
No ano de 2018, quando dentro da Universidade Federal alunos, alunas e alunes experimentavam o terror que se avizinhava de um candidato cujo slogan era uma ameaça “acho bom já ir se acostumando” ou “aceita que dói menos”, promovi um curso de extensão chamado “Corpo, ética, clínica: os sujeitos sacrificáveis na era da necropolítica” que buscava, a partir da leitura de textos antirracistas, decoloniais, feministas e estudos de gênero, instrumentalizar a comunidade universitária para enfrentar o mal com as armas que podíamos dispor. Naquele mês, nos dias que sucederam o evento da facada fiz um pequeno chiste no facebook que não teve mais que seis curtidas “eu não quero que Bolsonaro morra, quero que ele fique no hospital para sempre”.
Um dia depois meus amigos e colegas começaram a me mandar mensagens preocupados comigo, Fui olhar novamente o Facebook e vi que havia várias visualizações e mensagens privadas com ameaças e xingamentos. Era um ataque cibernético que, mais tarde, foi atribuído ao chamado “Gabinete do ódio”. mais de 20.000 compartilhamentos em um dia, facebook, instagram e twitter, fora o whatsapp. Descobri que minhas redes sociais eram monitoradas e stalkeadas por alunos, ex-alunos que se fingiam de amigos e sempre curtiam minhas postagens políticas. Até meu contracheque foi publicizado. Ainda que desde que inventaram o wi fi, o celular com aplicativo e o whatsapp meu trabalho seja falar sozinho para uma plateia de cabeças baixas ganhei fama nacional de professor doutrinador comunista.
Tudo porque sou sósia do Lênin. Nunca li nenhum livro dele e não falo sobre isso em aula. Tudo o que sou, como disseram Deleuze e Guattari em 2024, é uma rostidade. Sou burguês, tenho carro da Ford e uso Windows. Mas as pessoas acham que sou uma estátua em alguma praça de Moscou.
Tive que me esconder nas redes, no google, reconstruir meus perfis e me isolar do mundo digital por um tempo. 2018 foi o ano “da Onda”. O maior país da América Latina, uma das dez economias do mundo, elegeu o líder de um exército de homens grotescos armados de pistolas e disparadores de ódio e notícias falsas. Eu nunca consegui a onda a meu favor, só contra
"A Onda" é um filme alemão produzido em 2008 e é inspirado na experiência de um professor de história americano de Palo Alto que, através de exercícios e dinâmicas, consegue induzir em seus alunos comportamentos típicos da autocracia nazista.
Heiner Wenrger é um professor que usa jaqueta de couro e camiseta de banda, morou em ocupações e é um ativista político anarquista, Aqui já começamos a pensar no paradoxo de ser professor e anarquista e nos deparamos com aquilo que Freud postula da impossibilidade de educar, governar e curar. Ser professor e anarquista é um ofício cuja utopia mantém uma distância segura do objeto do desejo e o mantém como verbo intransitivo. Wenger, na experiência da Onda depara-se com o encontro paradoxal com a utopia e a morte do desejo. A experiência educativa da autocracia torna-se insuportavelmente plena e bem-sucedida, provocando nele um gozo insustentável que o conduz a um destino trágico como Édipo, que procura a si mesmo e se defronta no fim da história com o horror do encontro. No caso específico da educação, tal prática pressupõe um encaixe perfeito entre o desejo do emissor e do receptor.
O desejo, para Lacan, denota falta da falta, desejar é um verbo intransitivo, o desejo é sempre de desejar. , diferente da ordem possível do querer. Heiner Wenger quer ser professor de anarquia, mas uma interdição a partir de um colega mais velho e que encarna o "pai professor" o condena a ensinar sobre autocracia, ou seja, o oposto sintomático da Alemanha. Quando não consegue o que quer, Wenger acaba se encontrando com aquilo que deseja: o amor, a obediência e a eficácia. Os alunos aderem ao projeto da "Onda" com uma paixão jamais vista na Escola. O professor obtém aquilo que parece impossível: a plena experiência do encontro educativo. O encontro com o objeto de desejo é insuportável pois representa a morte, ou a tragédia inexorável como é conduzido o fim do filme.
Na versão americana de 1981, mais simples, concisa e menos carregada de detalhes e emoções, o professor é mais "careta" e a experiência da Onda é menos radical, mais racional e é encerrada didaticamente (o personagem "nerd" sofre mas se conforma e é consolado pelo professor, como bom neurótico, ao contrário do personagem alemão que aceita a experiência como a sua própria vida) O jovem aceita a ideia da onda plenamente como este Outro maior do que eu e o professor, e não a arma, dispara o tiro mortífero ao invadir o sonho alheio e dizer que com a morte do líder a onda morreria.
Em uma leitura sintomática, já elaborada nas muitas interpretações da experiência de Palo Alto e das duas películas que lhe fazem referência, "A onda" é vista como um alerta para os perigos da emergência do fascismo nas democracias contemporâneas, e parece se encaixar perfeitamente no momento da esfera política brasileira. Contudo isso é uma visão apenas parcial. É claro que, parafraseando Slavoj Zizek nas sua obras " Guia do perverso sobre ideologia" e "Alguém disse totalitarismo?" os elementos ideológicos do fascismo aparecem, recalcados e pulverizados nas democracias liberais capitalistas, e isso é evidente no Brasil: a eterna guerra contra um inimigo comum (comunismo, terrorismo, petismo, islamismo, criminalidade), inflação, desemprego e movimentos nacionalistas (protestar usando as cores do país é uma antiga prática integralista. No entanto, os elementos protofascistas não representam uma ameaça a democracia, e isso centraliza o debate atual sobre a deposição da presidente Dilma. O impeachment é ou não é constitucional, é ou não é um golpe, é ou não é democrático.
É claro que é democrático! Mas, como disse uma vez José Saramago em aula magna na UFRGS, se existe algo que não se discute é a democracia, ou seja ela é entendida como clausula pétrea, intocável, absoluta e parece ser a panaceia de todos os problemas do mundo contemporâneo. Os estudiosos das democracias contemporâneas dizem que o casamento do Estado Moderno, da Democracia e do capitalismo provocaram uma espécie de privatização da esfera pública, evidenciada pela predominância da propaganda política, dos financiamentos de campanha e da concentração da ação política na esfera partidária. Trocando em miúdos, o cidadão médio do mundo capitalista encontra sua participação política única e exclusivamente no ato de votar, denegando todas as outras: hábitos de consumo, ação nas esferas da educação e do trabalho, debate daquilo que é exposto nos grandes meios de comunicação, etc. Hoje a ação política que outrora se limitava ao voto está concentrada nos likes, viralizações, engajamentos e número de seguidores.
Em termos psicanalíticos, a democracia capitalista captura o sujeito na esfera simbólica das preocupações cotidianas de uma espécie de eterno presente: o dólar, a bolsa, o emprego, a criminalidade que irrompe na vizinhança outrora imaculada. O exercício da utopia, essa busca por uma outra realidade, o sonho, o exercício de outros possíveis é amputada e sua lacuna é preenchida por um universo de pura reação. Reação é uma expressão do sintoma e "reacionário" um sinônimo de fascista, nazista, conservador, aquele que age e irrompe em ódio e violência para que, no fim, as coisas permaneçam como estão, daí a polêmica declaração de Zizek na qual ele diz que Ghandi foi mais violento que Hitler.
O nazismo nada mais foi que uma virulenta reação de manutenção do eixo do poder higienista e capitalista no século XX e findou por colocar boa parte do mundo ocidental como refém dos "vencedores", delegando às democracias liberais o papel de guardiãs da liberdade e da inclusão.E aqui encontramos a verdadeira razão do "locus" cinematográfico das duas versões de "A onda": os EUA no início doas anos 80, no auge da democracia liberal e a Alemanha do século XXI, principal potência capitalista europeia e através de políticas e imigração e desenvolvimento parecia ter enterrado os fantasmas do nazismo para sempre.
Pois este fantasma hoje está mais vivo do que nunca. Nos anos 20 do século XX o mundo foi acometido pelo vírus da gripe e pelo fascismo, E isso se repete nos anos 20 do século XXI.
Sou professor de Psicologia para outros cursos. Desde a eleição de 2018 e o ataque cibernético nunca tive problemas com a onda bolsonarista em minhas turmas. Até que neste ano fui premiado. Em uma disciplina de Psicologia do Trabalho percebi que um aluno começou a demonstrar algum desconforto com minhas posições ideológicas, e isso geralmente acontecia no grupo de WhatsApp.
No retorno da greve compartilhei um texto do site Outras Palavras que trata do controle social exercido PELOS algoritmos e pelas plataformas. Este aluno fez uma crítica superficial ao texto dizendo que o ataque às redes sociais era um ataque à liberdade de expressão. Eu rebati dizendo que não há liberdade de expressão na lógica das plataformas e algoritmos. Minha intuição de mais de 20 anos de docência universitária acendeu. Percebi que havia um militante na aula, radical, e que poderia enfrentar novamente o ataque bolsonarista como em 2018. Chegou a hora, como diria o Safatle. Agora, como vários colegas que enfrentaram calunias, difamações e alguns até chegaram a sair do país, é a minha vez.
Resolvi que não trataria diretamente das pautas esquerdistas e que minha disciplina dali em diante seria prática, vivencial, voltada para a psicologia. Na próxima aula planejei fazer uma dinâmica de psicodrama com vários exercícios de aquecimento e expressão corporal, que culminariam em uma contação de histórias onde os alunos deveriam contar histórias sobre o trabalho, e pequenos grupos deveriam eleger uma história representativa e um contador. Pois foi a deixa, com plateia e palco, para o militante contar sua história padrão de programa do Edir Macedo das 7 da manhã. Até aí tudo bem, “eu era um bêbado, vivia drogado, encontrei Jesus, na casa do senhor não existe Satanás”, aquela ladainha de sempre. Não era exatamente isso, era uma história dramática e triste que conquistou a simpatia e o silêncio da plateia.
Mas aí veio o grande final. Como o Arthur Fleck do filme “Coringa”, cujo discurso antissistema não foi suficiente, era necessária a desmedida, sacar um revólver diante das câmeras e dar três ou quatro tiros no apresentador de TV canalha Robert de Niro. O sujeito saiu de seu momento clímax, olhou para mim e disparou ‘o professor é abortista, o professor é abortista, o professor é abortista”. Toda a turma ficou surpresa. Eu não lembrava de ter falado em aborto. Depois veio “o professor é a favor das drogas” e a artilharia começou “ o professor não fala de psicologia, só fala da opinião dele, é abortista, a favor das drogas e da censura nas redes sociais”. Eu cheguei a tentar contestar, com um pouco de irritação, mas percebi que havia caído em uma armadilha.
Como um boxeador que saiu das cordas de uma luta com o George Foreman eu respirei, agradeci pelo depoimento, segurei os ânimos de muitas pessoas da turma que queriam começar uma guerra e concluí a dinâmica.
È época de eleições meus amigos e amigas, e nas cidades pequenas candidatos a vereador estão aí armados de smpartphones, câmeras e militantes do MBL. E eles são perigosos.
Como eu disse em meu texto anterior, a realidade é um vírus que nos governa, e o vírus do fascismo está aí e não há remédio, não há argumento. Apenas vacina e isolamento
No fim da aula o militante veio apontar o dedo na minha cara e dizer que eu não podia falar a minha opinião em aula. E o que eu fiz foi dar-lhe um abraço, agradecer e dizer que eu gostava dele. Não é isso que Cristo faria “pai, perdoa-lhes eles não sabem o que fazem”.
Ou, como diria Sun Tzu: “ se o inimigo estiver cheio, torne-se vazio”.
Quem já passou as férias no litoral gaúcho sabe disso, A melhor maneira de enfrentar uma onda é deixar ela passar.
Fabio Dal Molin, professor da FURG, pós-doutorando do PPG em Psicanálise, clínica e cultura da UFRGS e sósia do Lênin, do Rob Halford e do Luca Prodan