As eleições para o parlamento europeu realizadas no último dia 9 sinalizam para aquilo que qualquer observador minimamente atento à cena política contemporânea já percebeu faz tempo: a força da nova extrema direita não é nuvem passageira. Veio para ficar no ecossistema político-ideológico mundial e nada indica que essa situação mudará no curto prazo.
Os reveses eleitorais de Trump nos EUA, em 2020, e de Bolsonaro no Brasil, em 2022, não significam que as forças democráticas conseguiram recuperar o terreno perdido. O próprio Trump é favorito para as eleições estadunidenses neste ano de 2024. Milei venceu na Argentina. O bolsonarismo continua forte no Brasil. Agora, partidos de extrema direita passam a controlar 21% do parlamento europeu, numa contundente derrota para os governos francês e alemão. Olaf Scholz e Emmanuel Macron estão em maus lençóis, assim como Biden nos EUA e Lula no Brasil. A única exceção parece ser o México, onde López Obrador elegeu com facilidade sua sucessora, Cláudia Sheinbaun. Precisamos, urgentemente, estudar o México com mais atenção.
Apesar de ser um fenômeno mundial, essa nova extrema direita assume feições específicas em cada país. Neste texto, quero mirar o caso brasileiro, apontando aqueles que me parecer ser os principais dilemas das esquerdas nacionais. Quero jogar luz sobre os gargalos, sobre aquilo que precisa ser resolvido no curto prazo, se não quisermos ver a derrota de Lula em 2026, em exercício de mandato e no controle da máquina. Sem dúvida, seria a maior derrota já imposta à democracia brasileira, pior até que o golpe de 1964.
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Alguns desses dilemas também se aplicam às esquerdas de outros países. Deixo claro quando for o caso. Então, vamos lá, por partes:
1) A dificuldade em apresentar um projeto próprio para a sociedade, e isso acontece também em outros locais do mundo. Cada vez mais, a polarização não se dá entre “direita” e “esquerda”, nos sentidos convencionais cristalizados desde o século XVIII. A disputa, hoje, é travada entre uma extrema direita ideologicamente estruturada em valores claros e um campo democrático ampliado, difuso e fundado no consenso mínimo de que a democracia liberal representativa deve ser conservada. Dentro dessa coligação ampla estão as esquerdas, precisando conviver com as contradições impostas pela “frente ampla”, para usar um termo bastante acionado no Brasil durante as eleições de 2022. Portanto, o governo do presidente Lula, tal como o governo de Pedro Sánchez na Espanha, não são governos de esquerda. São governos de frente ampla, o que naturalmente impõe limites políticos que frustram as expectativas nutridas pelas bases sociais organicamente de esquerda. Lidar com essa frustração não é algo fácil.
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2) O atual momento da história da acumulação capitalista impossibilita os acordos de classe que viabilizaram a versão brasileira da social-democracia, exatamente com o reformismo petista entre 2003 e 2016. O pacto gerenciado pelo presidente Lula consistia, basicamente, em não alterar as estruturas do capitalismo periférico brasileiro e utilizar o Estado para garantir direitos sociais básicos para uma massa de miseráveis que foram transformados em pobres.
Transformar o miserável em pobre. Esse foi o grande feito do reformismo petista, mas também é o seu limite. Uma vez transformado em pobre, o sujeito quer ser classe média, quer consumir mais, quer comer, morar e vestir melhor. Esses desejos são ainda mais excitados pela internet, que nos bombardeia todos os dias com propagandas direcionadas. É impossível atender a essas expectativas sem enfrentar as estruturas do capitalismo. O acordo que por mais de uma década sustentou o reformismo petista, portanto, não é mais possível. Sob a liderança do ministro Fernando Haddad, a esquerda brasileira está tentando liderar um movimento mundial em defesa da taxação das grandes fortunas. Hoje, não existe agenda política mais importante que essa. Disso, depende a sobrevivência da democracia e daquilo que costumamos chamar de “civilização”.
3) A comunicação digital está vocacionada para a simplificação. Na internet, viraliza aquilo que é escrito com poucos toques, que causa efeito conclusivo. É a tal da “lacração”. Por outro lado, a vocação das esquerdas sempre foi a complexificação da realidade. Vejam, por exemplo, o debate sobre segurança pública. O populista de extrema direita diz “bandido bom é bandido morto”. Essa simplificação grotesca de uma realidade complexa é muito mais compatível com a linguagem digital, sem contar a manipulação dos algoritmos. É muito difícil enfrentar a nova extrema direita neste espaço virtual. Por isso, é fundamental a regulação da internet pelo Estado nacional democrático, e isso vale apara todas as democracias ocidentais.
4) A dificuldade em desenvolver um discurso eficiente para a segurança pública, e aqui estamos no terreno do principal drama da esquerda brasileira, o calcanhar de Aquiles. A esquerda insiste em um garantismo ingênuo que não tem a menor credibilidade junto à população, principalmente com as populações periféricas. É fundamental a formulação de um discurso para a segurança pública que consiga reivindicar as ideias de “lei” e “ordem”. A dupla Flavio Dino/Ricardo Capelli conseguiu fazer isso no período em que esteve no comando do Ministério da Justiça e da Segurança Pública, quando o governo do presidente Lula apresentou os melhores índices de aprovação popular. Hoje, ninguém ocupa esse espaço.
5) No mundo inteiro, a esquerda contemporânea está fundada no paradigma da diversidade, ou no “identitarismo”, se quisermos adotar vocabulário menos polido. Trata-se de olhar para a sociedade e buscar as diferenças, a diversidade, o que inviabiliza o desenvolvimento de uma abordagem política que seja capaz de afetar a totalidade das pessoas, ou pelo menos as maiorias numéricas. A esquerda abandonou completamente as pretensões universalistas. É urgente o esforço de pensar a sociedade a partir daquilo que aproxima as pessoas, daquilo que elas têm em comum. As agendas da moradia, do meio ambiente, da saúde pública, da segurança, da educação e do trabalhado parecem ser promissoras.
6) A esquerda contemporânea abandonou as utopias, não é mais capaz de produzir uma imaginação política encantada pela promessa de um futuro melhor para TODAS as pessoas. A politização do tempo está acontecendo em outros termos: mirando o passado, com a agenda da reparação histórica. O afeto político provocado não é o da esperança, mas sim o do ressentimento. Fora das bolhas de militantes iniciados, o ressentimento não encanta, não mobiliza, não seduz. Soa antipático e cansativo.
7) No Brasil, a esquerda colide com absolutamente todos os consensos sociais. Aborto, políticas de gênero e outras pautas ligadas ao comportamento. Sem entrar no mérito dessas agendas, é fato que são rejeitadas pela maioria da população. Como a democracia de massa é majoritária por premissa, têm o direito de governar apenas aqueles que conquistaram o apoio da maioria. Como conquistar esse apoio enfrentando todos os valores e consensos estabelecidos?
Enfim, são muitos os dilemas e as respostas não são claras. Tampouco há consenso sobre o que deve ser feito. Enquanto isso, a sensação que fica é que estamos todos marchando para o abismo civilizatório, com o relógio da barbárie em contagem regressiva,
10, 9, 8..
Tempo é tudo o que não temos.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.