OPINIÃO

A política que não representa nada, parte 2: Brasília na estrada da fúria

No mundo em ruínas de Mad Max, os senhores da guerra comandam proto-estados capitalistas iguais aos do “velho mundo”

A política que não representa nada, parte 2: Brasília na estrada da fúria.Créditos: Meme/Reprodução
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No dia 04 de junho de 2024, enquanto mais de 600 mil pessoas estão desalojadas e pelo menos 100.000 tiveram suas moradias destruídas no Rio Grande do Sul, o deputado estadual mais votado do Estado teve aprovado um projeto de lei que corta benefícios sociais de participantes de ocupações de terra e de habitações urbanas. Algumas semanas antes, na câmara federal, o deputado Ricardo Salles, ex-ministro do meio—ambiente de Bolsonaro, apresentou projeto similar, que serviu de modelo a outros estados. Que tipo de pessoa faz isso e é eleita?

Os cientistas do clima afirmam que a catástrofe climática apresenta dois fatores humanos tanto nas suas causas quanto nas suas consequências: um deles é a degradação ambiental pela queima de combustíveis fósseis, o desmatamento, o a produção de bens de consumo descartáveis e poluentes e a compactação do solo para as monoculturas. O outro fator é a desregulamentação habitacional e a agricultura predatória, que leva moradias, indústrias e plantações para as várzeas e beiras dos rios. 

As culturas originárias, por questão de necessidade, sempre procuraram a proximidade dos rios, porém, ou construíam suas habitações a uma distância segura ou de forma provisória. Nessas comunidades a cheia era efetivamente um fenômeno da natureza que dizia respeito apenas ao rio, a vegetação próxima e aos animais. 

A tragédia habitacional  envolve destruição de comércios e empregos, geladeiras, televisões, casas de alvenaria, fábricas, automóveis e tem como causa a acumulação do capital e a exploração do trabalho pelas elites que são representadas na democracia por deputados como Gustavo Vitorino e Ricardo Salles, insensíveis, cruéis, fisiológicos e demagogos, e esse perfil de político tomou conta das instâncias representativas brasileiras especialmente a partir do ano de 2014.

O cientista político Marcos Nobre, em seu livro “Limites da democracia:de junho de 2013 ao governo Bolsonaro” analisa o sistema político Brasileiro de 1994 a 2010 como “governos de coalizão”, quando PT e PSDB disputavam na eleição majoritária para ver quem coordenaria a negociação com a maioria do congresso nacional, e segundo ele, colocando em segundo plano o conflito e o debate políticos em detrimento do consenso e do fisiologismo. Cabia a oposição ideológica ocupar uma “franja” secundária.

Daí surge o conceito ampliado de “centrão”, que originalmente surgiu na assembléia constituinte de 1988 como um bloco da direita moderada para conter o avanço da esquerda que emergiu potente dos anos de chumbo. Segundo Nobre, foi principalmente com a explosão do PMDB como partido hegemônico no ano de 1986, quando elegeu 22 governadores na onda do Plano Cruzado que o a ideia de centralidade pode ser substituída pela de “peemedibização” da política. O PMDB, hoje MDB notabilizou-se por ocupar cargos  em todos os governos brasileiros desde a redemocratização e de também compor uma maioria de deputados e regular as pautas e negociações com o executivo. O (P)MDB foi tão capililarizado que o próprio PSDB é derivado de uma discidência.

Talvez o único governo da “era da coalizão” que não tivesse o (P)MDB em seus quadros tem sido Lula 1, mas logo em seguida o grande líder sindicalista já articulou uma aliança com Michel Temer, e o resto de mais essa farsa política brasileira todos já sabemos.

Segundo obre, em junho de 2013 alguma coisa saiu dos trilhos, e isso talvez se deva ao excesso de negociações  para manutenção dos governos petistas. Com o governo de Dilma Roussef com pouco poder de barganha no congresso em pânico pela iminência da lava jato e afastado de suas bases, tanto a esquerda e a direita mais radicais quanto a classe média em peso saíram as ruas para expressar o descrédito com a política. A crise da representatividade nunca esteve tão abalada, e a reação dos políticos foi no sentido contrário ao que pediam as ruas: o congresso se dissociou ainda mais da população e começou a legislar apenas em causa própria, a ponto de aprovar o impeachment de uma presidenta cujo crime não foi comprovado. A deposição de Dilma foi a demonstração cabal  de que o Congresso Nacional Brasileiro governa o país sem compromisso com a lei, a justiça  e a sociedade, e com a legitimidade do voto popular.

E o que veio depois foi ainda pior com a ascensão do bolsonarismo como fenômeno de massa e como tecnologia digital de hackeamento da subjetividade e do sistema eleitoral.

A  partir da eleição de 2018, o Congresso Nacional, que, mesmo elitista, ainda guardava uma certa diversidade ideológica e programática, foi totalmente invadido por influencers, coronéis, delegados, capitães, pastores formando um imenso bloco de defensores das grandes oligarquias que comandam o Brasil pelo poder, pelo dinheiro, pela força e pela violência: a bancada do Boi (do agronegócio em geral) da Bala (metalúrgicos, fabricantes de armas, mafiosos, traficantes e milicianos) de a Bíblia (as igrejas evangélicas neopentecostais).Desde então, o mundo começou a acabar no Brasil, pelo extermínio dos povos nativos, a mineração, o desmatamento, o aquecimento global, o emprego precário, a violência contra as mulheres e populações LGBTQIAPN, o racismo as milícias e a exploração selvagem do turismo. E  muito pouco durou o alívio da eleição de Lula, pois hoje os senhores da guerra do congresso nacional comandam o orçamento e as pautas.

Não é à toa que surjam muitas postagens comparando a política brasileira com séries ou filmes futuristas distópicos. Eu mesmo farei aqui a minha comparação favorita, que é com a saga Mad Max, inspirado na estréia da “prequel” “Furiosa” nos cinemas em 2024.

O Brasil na estrada da fúria

Ainda lembro quando, nos anos 80 eu e meu irmão estávamos em Tramandaí e havia um cinema Drive In (onde a tela ficava em um imenso estacionamento e  captava-se o audio pelo radio do carro). O muro do cinema era baixo e paramos o carro ao lado, podendo ver tudo. O filme era Mad Max, de 1979, estrelado por um ator novato e de olhos intrigantes chamado Mel Gibson.
O filme tratava de uma civilização rumo a decadência e que começava a ser dominada por gangues  de homens  violentos armados  pilotando motocicletas e automóveis envenenados.

A ação social naquele futuro distópico  era a luta pela sobrevivência e acontecia na estrada. A função de Max era ser um policial rodoviário em uma sociedade em ruínas e  os imensos trilhos de asfalto estéril pareciam simbolizar o fim de todo tipo de moral ou normativa social. Em Mad Max e em suas duas sequências que encerraram uma trilogia em1985 o diretor George Miller apresentou uma rara sincronia entre argumento e ação, afinal, naquele universo de caos distópico correr ou lutar significavam sobreviver. E a sobrevivência em um clássico futuro distópico cinematográfico gira sempre em torno de comida, armas, máquinas e, principalmente, gasolina.
Em  2015  com “A estrada da fúria” e a atual “prequel” “Furiosa” George Miller retorna ao universo  distópico e o seu taciturno herói é convidado a agir em um ambiente de três grandes simulacros de feudos futuristas (apesar de eu desconfiar que o filme se passa nos dias de hoje, mesmo): os senhores das balas e das armas,  os senhores da  gasolina e  o grande senhor das águas (qualquer semelhança com as bancadas boi, bala e bíblia parece coincidência mas não é).

Os chamados “senhores da guerra” são os mandarins de uma sociedade de capitalismo radical, mas que perdeu a esfera da produção e manteve o individualismo, o cinismo e a brutalidade nas relações de escambo e exploração da miséria, da ignorância e da escravidão de velhos, doentes, mutantes pós nucleares e, especialmente, mulheres, estas condenadas a serem matrizes e nutrizes do senhor das águas, o tétrico e escatológico Immortan Joe. Aliás, de novo não parece ser coincidência com a política brasileira que o mais poderoso dos senhores da guerra tenha uma legião de fanáticos  estúpidos que fazem qualquer sacrifício por ele, e que ele seja também o genitor de uma prole defeituosa de doentes mentais violentos. 

Em “Road of fury”e “Furiosa”, ao contrário dos três filmes anteriores, George Miller mantém o clima sombrio e pessimista, mas apresenta uma certa potência de utopia e esperança, e ela vem do protagonismo das personagens femininas Furiosa, as esposas de Immortan e das guardiãs do verde.

No seu famoso e polêmico livro “Violência” Slavoj Zizek afirma que “Ghandi foi mais violento que Hitler”. Como assim? O filósofo esloveno afirma, parafraseando Gilles Deleuze, que o pensamento precisa ser violento, no sentido de romper com estruturas e criar possíveis. Ghandi fez uma revolução pacífica que, pelo menos por algum tempo, revolucionou a sociedade indiana, enquanto Hitler apenas reproduziu os velhos ideiais higienistas e nacionalistas mais antigos que a própria Europa.

No mundo em ruínas de Mad Max, os senhores da guerra comandam proto-estados capitalistas iguais aos do “velho mundo”, enquanto Furiosa explode as máquinas pelo lado de dentro.

A vereadora Marielle Franco foi assassinada de forma brutal e desmedida por homens que se chamam conservadores, pois ela representava justamente a potência vital do novo, de um Brasil possível onde as mulheres negras tem voz. Jair Bolsonaro , Sebastião Melo, Gustavo Vitorino e toda essa casta pútrida e malcheirosa de homens velhos e cansados representa o velho Brasil afogado em lama e chorume.

Fabio Dal Molin

Psicólogo, psicanalista, doutor em sociologia, professor da FURG e pós-doutorando em psicanálise, clínica e cultura da UFRGS

@b.dalmolin @autodefesa2024