"pulvis es, tu in pulverem reverteris", padre antônio vieira².
a chegada.
nós chegamos ao mundo como chegaram, um dia, aquelas grandes embarcações barulhentas.
tudo é novo diante de nossos olhos virgens.
as primeiras lufadas de ar que arquejamos nos sufocam.
os primeiros focos de luz nos cegam.
em seguida, são eles que nos trazem a lucidez do mundo lizidio.
no primeiro momento, tudo em volta é confusão e desconforto.
uma vez que estávamos acostumados à calmaria do berço vêntrico com sua liquidez amniótica.
nascemos para ser feliz, entretanto, ninguém nasce sorrindo.
o choro é o nosso grito primordial.
choramos para pedir comida, para dizer que temos frio ou sono, pra exigir carinho...
o choro é a nossa primeira forma de linguagem.
mas esse choro primevo não tem o significado emocional dos choros subsequentes.
as primeiras lágrimas que gritamos são destituídas de tristeza.
elas são uma vontade de dizer.
o choro da bebê é um ato primitivo de fala.
quando aprendemos a sorrir, descobrimos a alegria.
e, só a partir daí é que, por contraste, o choro ganha um novo significado.
então, o choro perde o seu atributo de palavra e passa a ser a expressão de um sentimento.
lembremos que é sempre as mãos de uma terceira pessoa que no inaugura no mundo da vida.
não surgimos como a filhote de uma baleia que já nasce sabendo nadar.
ou como uma girafinha que despenca de uma grande altura e, em seguida, fica de pé, caminha e come.
nós precisamos da sutileza diante do ato violento que retira, de dentro de uma caverna escura, um ser demasiadamente frágil.
até o menino-deus precisou das delicadas mãos de uma salomé.
a parteira é o porteiro, não o que guarda a porta, mas o que guarda o porto.
é ela quem desata o nó da nau da vida e permite que a nau navegue livre.
no ventre, éramos um barquinho ancorado.
durante um certo tempo mamamos, amamos, choramos, sorrimos, falamos, respiramos ares e enxergamos todas as cores do mundo.
depois vem o naufrágio.
somos uma nau frágil, por isso, uma hora soçobramos.
inexoravelmente virá o dia em que deixaremos de enxergar a luz e o ar nos faltará.
é o tempo da partida.
ou da volta.
o tempo em que esse tempo acaba.
e, novamente, mãos terceiras nos devolverão a uma caverna escura.
para começar tudo de novo.
por isso, antígona lutou tanto para que seu irmão polinices tivesse o direito ao túmulo.
os ritos de passagem, em todas as culturras, têm sempre o túmulo.
porque enterrar é como plantar uma semente.
o coveiro é como o bom semeador, ele é o porteiro de um outro porto.
no momento que ouvimos a batida da porta que se fecha às nossas costas, vemos entrar a luz da outra porta que se abre à nossa frente.
é caronte, o barqueiro sombrio, quem nos ajuda a fazer a passagem.
e depois dele haverá, sempre, uma salomé.
a parteira que iniciará uma nova partida.
e assim, vida e morte se complementam, eternamente.
palavra da salvação.
¹poepitáfio para um tio que partiu hoje.
²sois pó, e em pó vos haveis de converter (sermão da quarta-feira de cinzas).