No final de semana, dias 17, 18 e 19, estivemos no quilombo Nosso Lar, em São Cristóvão (SE), para a gravação do curta-metragem ficcional "O Cinema Salva", com direção de Marcelo Rodrigo.
A presença da equipe de filmagem agitou a quebrada.
Dezenas de crianças e adolescentes colaram na produção; uma gente curiosa, interessada e interessante.
Sempre fazendo perguntas e demonstrado abertura ao aprendizado.
As senhoras, mais discretas, iam chegando devagarzinho, com uma vassoura na mão, e daqui a pouco estavam integradas à muvuca.
Abriram a porta de suas casas pra gente, ofereceram acolhimento, água, cafezinho e cederam até o sofá da sala para um cochilo.
Chegávamos no quilombo às seis da manhã e só íamos embora no início da noite.
No set, as pessoas em volta acompanhavam o trabalho com bastante atenção; sensíveis, aplaudiam quando percebiam que uma cena difícil fora feita com qualidade.
Aos poucos, a quebrada foi ganhando intimidade e confiança, e algumas pessoas já pediam para participar do filme.
Como trabalhamos com roteiro aberto, fomos fazendo ajustes durante o processo e incluindo personagens, integrando a comunidade ao elenco.
A própria presença dos jovens, com seu pretuguês, sua corpo-oralidade cheia de ginga, seu vasto léxico corporal e sua gramática gestual autóctone, contribuiu para a construção de personagens.
Não fizemos somente cinema NA comunidade, fizemos cinema COM a comunidade.
Sempre que trabalhamos juntos, Marcelo, Jade Moraes, eu, Pauly de Castro e Edu Freire, buscamos nos integrar ao lugar e à sua gente.
Assim, a gente consegue uma organicidade com o lugar e com as pessoas e essa é a melhor forma de fazer o trabalho fluir de forma agradável.
E é com um sorriso no rosto, e a seriedade que o trabalho exige, que a coisa anda.
Ouvimos dos líderes comunitários, que aquele lugar já foi um tenebroso cenário de crimes de toda sorte, as pessoas de fora temiam entrar na quebrada.
Conversamos com algumas senhoras que tiveram filhos presos ou assassinados, muitos jovens viram tios e pais andarem armados.
Muitos viram corpos desovados nos terrenos baldios.
Mas hoje o quilombo Nosso Lar é só alegria.
Não há armas e nem crimes, a garotada brinca livre pelas ruas do bairro e todo mundo se junta na praça de esportes.
As crianças estão crescendo sem o trauma daqueles tempos sombrios.
Há, também, um forte vínculo de parentesco e todo mundo parece ser tio, irmã, primo ou cunhado; todo mundo cuida de todo mundo e ninguém cuida da vida de ninguém.
Em paz, todos demonstram ter orgulho de pertencer àquela comunidade.
Havia mesmo pessoas com camisetas onde se lia: Orgulho de ser Quilombo.
Agora, os festejos juninos estão bombando, as pessoas chegam de diversos lugares para se divertirem lá.
Uma gente alegre, forrozeira, esfregativa e suante.
É bonito o trabalho que está sendo feito lá, essa transformação social não tem o dedo do poder público, ali é o “nós por nós” operando, o comunitarismo, o quilombismo, como queria a sergipana Beatriz Nascimento.
No sábado à noite, Marcelo, Jade e eu, no jardim da casa deles, trabalhamos para construir a última cena.
Como íamos amarrar aquela história depois de sentirmos a pulsação da comunidade?
Decidimos, depois de muita discussão, chegar ao formato que mais traduziria a energia transformadora que captamos na comunidade Quilombo Nosso Lar.
O final teria que ser poético.
Simples, singelo, mas com força expressiva suficiente para trazer brilho aos olhos e deixar os corações quentinhos.
Algo que traduzisse, de verdade, as aspirações daquela gente.
E assim foi.
Salve o cinema negra e o cinema negro sergipano.
O cinema salva.
Palavra da salvação.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.