OPINIÃO

“Remover para promover”: as cidades provisórias e o descarte dos vivos

O progresso econômico faz com que modos de existência efetivos se tornem inviáveis e impraticáveis, aumentando desse modo o tamanho das terras desertas que jazem ociosas e abandonadas

Conjunto de apartamentos novos desabitados em Porto Alegre.Créditos: Fábio Dal Molin//Arquivo Pessoal
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Nosso planeta está cheio.

Essa afirmação, permitam-me esclarecer, não vem da geografia física ou mesmo humana.

Em termos de espaço físico e da amplitude da coabitação humana, o planeta está longe de estar cheio. Pelo contrário, o tamanho total das terras desabitadas ou esparsamente habitadas, consideradas inabitáveis ou incapazes de sustentar a vida humana parece estar se expandindo, e não se encolhendo.

À medida que o progresso tecnológico oferece (a um custo crescente, sem dúvida) novos meios de sobrevivência em habitats antes considerados inadequados para o povoamento, ele também corrói a capacidade de muitos habitats de sustentar as populações que antes acomodavam e alimentavam. Enquanto isso, o progresso econômico faz com que modos de existência efetivos se tornem inviáveis e impraticáveis, aumentando desse modo o tamanho das terras desertas que jazem ociosas e abandonadas” (BAUMAN, 2005, p.11).

Segundo levantamento feito pelo Jornal Sul 21, há pelo menos cem mil imóveis desocupados na região metropolitana de Porto Alegre.

O filósofo Michel Foucault abriu seu seminário “A sociedade punitiva” falando sobre as diferenças entre as sociedades inumantes vs. as sociedades incinerantes para concluir, de maneira bem humorada, que, assim como os arqueólogos se debruçavam nos estudos sobre como as sociedades descartavam seus mortos, o interesse dele era nas maneira como as sociedades descartam seus vivos. E assim se estrutura boa parte da obra de Foucault, nos mecanismos de saber e poder e seus dispositivos tecnológicos e arquitetônicos na tarefa de segregar seres humanos. 

Se comparada com a pandemia da Covid-19, a grande catástrofe climática do Rio Grande do Sul possui um número relativamente pequeno de vítimas fatais, mas um contingente enorme de vítimas vivas, que perderam tudo, literalmente, suas casas, seus empregos, seus empreendimentos, suas cidades. Calcula-se que mais de 500 mil riograndenses estejam desalojados e mais de 90 mil vivendo em abrigos provisórios, sendo que uma boa parte desta população já vivia em situação de risco ou vulnerabilidade  muito antes da ocorrência das chuvas.

O prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (eleito pela aliança MDB-PL), apresentou uma proposta de criar “cidades provisórias”. As “cidades provisórias” serão acampamentos e permaneceriam até terem acesso a políticas habitacionais. A intenção é construir estruturas temporárias com dormitórios individuais, áreas comunitárias e espaços para crianças e animais de estimação. Em Porto Alegre, a proposta é construir uma cidade provisória no chamado “Porto Seco”, local distante do centro para onde o desfile de Escolas de Samba da cidade já foi removido.

A gestão de Melo foi marcada pela privatização de serviços públicos e a formação de parcerias público-privadas na administração de escolas, parques e espaços de lazer, assim como a gentrificação e verticalização de zonas residenciais. Nos últimos três anos  Porto Alegre se converteu em um imenso canteiro de obras de grandes incorporadoras como Rossi, Melnick e Cyrella-Goldsztein, que constroem imensos condomínios onde, atualmente, não vive quase ninguém, a ponto de a Companhia de Supermercados Zaffari ter feito uma promoção de Natal tendo como objeto de sorteio um apartamento da Melnick.

Assim, além de prédios públicos ou edifícios antigos nas áreas centrais, há também um elevado número de edificações novas e gentrificadas sem serventia, o que não é um fenômeno incomum. No documentário “Behemoth” podemos ver a destruição de montanhas inteiras pela mineração e a miséria absoluta dos trabalhadores que chegam a morar em escavadeiras em contraposição a cidades imensas do tamanho de Porto Alegre, novinhas sem ninguém morando, uma verdadeira bolha da construção civil. Em frente a minha residência, na avenida Protásio Alves, há um imenso conjunto de apartamentos com mini-shopping no térreo que está pronto há dois anos, sem nenhuma unidade vendida. 

Restinga: o primeiro modelo de “cidade provisória”

Não é coincidência o fato de Sebastião Melo ter sido eleito com apoio bolsonarista e ter como vice-prefeito um militante do PL e do canal Brasil Paralelo. A política de “cidades provisórias” não é recente na história de Porto Alegre, e ela tem início com o golpe militar tão relembrado e celebrado pelo bolsonarismo, e originou um dos maiores bairros da capital, onde tive a oportunidade de produzir minha tese de doutorado em Sociologia na UFRGS: a Restinga.

O DEMHAB - Departamento Municipal de Habitação, fundado em 30 de dezembro de 1965, criou uma politica habitacional que tinha como objetivo remover as populações localizadas nas regiões que hoje são o Centro Histórico, o Menino Deus e a Cidade Baixa, que eram consideradas pobres, precárias ou mesmo “feias” por diferentes motivos explícitos e implícitos, entre os quais a proteção contra inundações.

O terreno escolhido estava localizado na zona sul, a 23 km do centro da capital, uma mata de Restinga para cuja terraplanagem foi preciso remover metade de um morro (o que violaria até mesmo a amputada legislação atual). Na época, por causa da enchente de 1941, as indústrias do chamado 4º Distrito sofreram danos irreparáveis e urgia a necessidade de um local para reconstrução (ironicamente o 4º Distrito abandonado foi revitalizado e gentrificado na gestão Melo, e todos os empreendimentos dali foram varridos pela enchente da mesma forma que em 1941).

A ideia era construir um bairro planejado arquitetonicamente nos princípios do higienismo, com super quadras, unidades vicinais e centros comunitários e de saúde. Surgiu então, o projeto Nova Restinga. No papel, ou seja, no discurso, o projeto cumpria seu papel, removia as populações carentes das áreas centrais e promovia um espaço urbano organizado, limpo, digno. Contudo, como é muito comum no capitalismo tardio do chamado “terceiro mundo”, não foi bem assim.

Uma parte da população participou de uma triagem do BNH e receberia os imóveis mediante um financiamento (um tipo de Minha casa, Minha Vida, versão bizarra) e uma outra parte foi removida a força, sendo inclusive suas moradias e escolas desmontadas e transportadas em caminhões do Exército. Essa população foi reassentada em um terreno provisório ao lado do “plano piloto”, sob a promessa de que o projeto seria ampliado e todos teriam direito a moradia “digna”. É claro que isso não aconteceu e a chamada “Restinga Velha” foi se construindo como eterna “cidade provisória”, receptáculo de inúmeras remoções, e sendo urbanizada pela luta de seus engajados moradores, em quase 60 anos de história.

Com a inédita enchente do Guaíba, Porto Alegre chegou ao fundo de um poço cheio de lama, lixo e cadáveres, as eleições para a prefeitura estão chegando, e serão a batalha final pelo futuro da cidade, cuja população foi brutalmente agredida ao longo de 20 anos de gestores insensíveis e comprometidos com a depredação do bem comum.

É preciso lutar

(...) o gueto é um dispositivo socioespacial que permite a um grupo estatutário dominante

em um quadro urbano desterrar e explorar um grupo dominado portador de um capital

simbólico negativo, isto é, uma propriedade corporal percebida como fator capaz de tornar qualquer contato com ele degradante, em virtude daquilo que Max Weber chama de “estimação social negativa da honra”. Em outros termos, um gueto é uma relação

etnoracial de controle e de fechamento composta de quatro elementos: estigma, coação,

confinamento territorial e segregação institucional (WACQUANT, 2001, p.100)

Fábio Dal Molin

Psicólogo, psicanalista, doutor em Sociologia, professor da FURG e pós-doutorando em Psicanálise, Clínica e Cultura -UFRGS

@b.dalmolin @autodefesa2024