HISTÓRIA

Diretas Já: confesso que fui a alguns comícios pra vaiar – Por Mouzar Benedito

Víamos que muitos líderes que faziam discursos emocionantes no palanque, por trás dos panos trabalhava contra as eleições diretas

O comício no Anhangabaú.Créditos: Governo do Estado de SP
Escrito en OPINIÃO el

Sim, eu era a favor das eleições diretas. Radicalmente a favor. Mas ainda no meio da campanha, comecei a desconfiar que alguma coisa estava errada. Alguns dos grandes personagens estavam ali fazendo um jogo de cena. E peguei raiva deles. Vaiei. Eu e uma turma de amigos, principalmente militantes petistas da Zona Leste de São Paulo.

Conto como aconteceu.

Em 1984, eu era militante dos mais animados do PT. Quando começou a campanha pelas eleições diretas, entrei com tudo. O primeiro comício, por iniciativa do próprio PT, que chamou outros partidos e líderes para participar. Foi em 15 de novembro de 1983, na praça Charles Miller, em frente ao Pacaembu. Não foi um grande sucesso, os cálculos otimistas falaram em 15 mil participantes. Brinquei que a baixa adesão devia-se aos outros partidos, se fosse um comício só do PT teria mais gente.  “Esvaziou pelas alianças”, brinquei mais uma vez, como petista gozador.

Mas em 1984 a coisa pegou. PMDB (não havia ainda o PSDB), PDT, PSB, sindicatos, grupos religiosos e vários movimentos sociais pareciam ter entrado na luta pra valer. Sem contar atletas da Democracia Corintiana, como Sócrates, Casagrande e Vladimir, além de personalidades como o locutor Osmar Santos e muitos artistas (cantores, atores...). E também boa parte da grande imprensa. Foi empolgando todo mundo, o número de pessoas participantes se multiplicava.

Desde o início de 1984, houve comícios em quase todos os estados, começando com 60 mil pessoas em Curitiba, depois 250 mil em Goiânia... até chegar a um número calculado em 1,7 milhão pela imprensa, no Anhangabaú. Um número exagerado, sem dúvida. Não cabia tanta gente no Anhangabaú. Se a imprensa estivesse contra, ia dizer que tinha uns quinhentos mil, no máximo. De qualquer forma, era muita gente. Eu estava lá, e mesmo não confiando em alguns líderes, que faziam belos discursos, me emocionava com a crença do povo que o Brasil estava saindo da ditadura. Podia até acontecer, à revelia de falsos líderes.

Desde uns comícios antes, uns amigos e eu já não estávamos tão eufóricos com esses comícios. E vaiávamos alguns oradores. É que víamos que muitos líderes que faziam discursos emocionantes no palanque, por trás dos panos trabalhava contra as eleições diretas. “Se houver eleição direta, o Brizola ganha”, diziam muitos peemedebistas da época, que queriam uma democracia sob controle deles. As más línguas diziam que Tancredo Neves era um deles, não sei. Um que eu tenho certeza, até hoje figura da mais alta estirpe, não me arrisco a dizer o nome, pois as testemunhas são da sua turma, seu partido, e eu correria o risco de ser processado por calúnia ou coisa que o valha. Testemunhas que seriam minhas, passariam a ser testemunhas dele.

No comício de Osasco, esse personagem mal acabou de fazer um discurso vibrante, belíssimo, desceu do palanque e foi para o meio da sua turma. Eu estava no grupo e ele deve ter pensado que também era dessa turma. Todo mundo empolgado, ele falou: “Isso não pode passar. Se passar, o Brizola vira presidente”.

E daí percebi que ele (como alguns outros) trabalhava contra, convencendo a votar contra as diretas alguns governistas do PDS (substituto da Arena como partido da ditadura) que queriam votar a favor. O deputado, mesmo governista, dizia que suas bases não o perdoariam se votasse contra as eleições diretas, e alguns dos líderes da campanha, que deveriam reforçar essa posição dele, tentavam fazer o contrário, diziam que se encarregariam de dar apoio político pra ele depois. E assim, houve uma broxada geral, quando a Câmara dos Deputados não aprovou a emenda das eleições diretas para presidente. Os votos favoráveis às diretas foram maioria (298), mas não atingiu dois terços. Mais de 100 parlamentares se ausentaram. Certamente muitos deles convencidos pelos falsos democratas...

Então, como disse, bem antes da votação na Câmara, que emudeceu o Brasil de tristeza, nós, os descrentes, íamos aos comícios também, mas não para aplaudir todo mundo. Era para vaiar certos políticos. Num comício na Praça da Sé, em São Paulo, com palanque em cima da escada da Catedral e o povão ocupando a praça inteira, quem ia para o palanque entrava por trás do povo, por uma ruazinha que ia da Praça João Mendes até a Sé, lateral à igreja. Acontece que na esquina dessa rua com a Praça João Mendes havia um boteco tipo sujinho (ou pé-sujo, como dizem alguns) e ficamos nele, uma turma da Zona Leste e eu, bebendo cachaça e cerveja e vaiando quase todos os políticos que passavam por ali para ocupar o palanque. Quase todos mesmo! E olha que, se na época eu achava que cometemos algumas injustiças, hoje acho que não.

PS: Publiquei uma crônica com o título “Vaias para todos!” no livro “1968, por aí... Memórias burlescas da ditadura” (Publisher Brasil, 2008). Na minha moleza dengosa, com enorme preguiça corporal e mental (lá se vão três semanas com a doença maldita), só tive o trabalho de puxar dos originais e dar uma incrementada.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.