"o que faz esse animal fora da arca, meu deus do céu?", perguntou tia gorete, diante da cena diluviana.
uma mão na cintura e outra na boca; a cara de espanto.
ela via, pela tevê, a comovente imagem de um cavalo se equilibrando, como um bailarino, sobre a cumeeira de um telhado.
imóvel, o equino parecia exausto.
não se sabe por quanto tempo ele lutou contra aquelas furiosas águas barrentas, até fazer do telhado o seu estábulo.
vovó lizete, com as pernas estiradas no sofá retrátil, pediu pra irmã aumentar o volume da tevê.
o cãozinho, biloca, latiu pedindo silêncio.
a veterinária informou ao repórter que um animal daquele porte poderia pesar até meia tonelada.
tia gorete olhou pra irmã com os olhos esbugalhados, vovó lizete demonstrou o mesmo espanto, biloca parecia emitir um enigmático riso de canto de boca.
a informação trouxe mais dramaticidade pra cena inusitada, porque o cavalo parecia levitar sobre aquela frágil estrutura sob suas patas.
a reportagem deu conta de que o bicho estava ali por pelo menos quatro dias e noites, de pé, com sede, com fome e com frio, tomando chuva no lombo.
vovó lizete lamentou a desgraça do pobre animal e torceu para que o resgate chegasse logo, rogando a graça a são francisco de assis.
tia gorete enxugava uma lágrima.
biloca, que é poeta e filósofo como o quincas borba, imaginava como aquele cavalo devia estar usando a imaginação para obliterar aquela imagem de morte e destruição que é obrigado a encarar.
ele deve estar sonhando acordado, pensou o cãozinho, imaginando-se novamente correndo, fagueiro e feliz, por uma campina verdejante, cheia de cavalos amigos, éguas de crinas cremosas e poltros brincantes.
biloca tem razão, a poesia deste cavalo resiliente, comoveu por sua plasticidade, perseverança, força e determinação.
ali era a vida, em seu estado bruto, lutando contra a brutalidade da morte.
o resgate, em fim, chegou.
uma equipe de bombeiros e veterinários sedou o animal e o debruçou sobre um bote, enchendo o coração de tia gorete e vovó lizete de esperança e amor à vida.
vovó lizete não tem dúvidas de que são francisco ouviu suas preces e intercedeu pelo quadrúpede.
a reportagem jogou mais doce na boca das senhoras, disse que o cavalo foi apelidado de caramelo e que, como ele, mais de cinco mil animais já haviam sido resgatados.
vês?, era um cavalo, e agora ele se multiplica em milhares de outros animais.
vivinhos da silva.
contemos, enquanto podemos, os que estão dentro da arca.
porque por baixo daquelas águas ocres e lamacentas estão granjas, canis e galinheiros inteiros.
milhares de bois e vacas, porcos e leitões, cavalos e éguas, cães e gatos, galinhas e patos morreram afogados.
caramelo é uma metáfora para essa desgraça, o que não pode morrer, diz aquela imagem equina, é a poesia.
no dilúvio de '41, quando o rio guaíba inundou porto alegre, mário quintana poetou que sonhava acordado vendo que "andava um barco de verdade assombrando corredores".
agora, barcos singram ruas, adentram estabelecimentos comerciais e entram pela porta da sala das casas, a resgatar viventes.
ao final da reportagem, biloca veio ao meu quarto, cabisbaixo como um náufrago, subiu na cama e pediu cafuné.
emitia um latido fino e cheio de tristeza, o rabo colado ao corpo e ele todo enrolado, como uma bolinha.
eu disse a ele, num suspiro, "quando baixarem as águas, biloca, veremos quantos humanos há entre os desumanos, porque vai ser preciso muita humanidade para lidar com tamanha dor diante de tantas perdas.
e quando será?, ele perguntou, lançando-me um olhar de filósofo canino.
todo dilúvio emite um sinal de seu desfecho, eu disse ao cão, mas nem toda arca atraca no ararate.
a nossa tragédia é brasileiríssima.
quintana, o alegre poeta do alegrete, surgirá nos céus com um ramo de relva no bico.
e um anjo, todo molhado, tocará num telhado o seu flautim: pirulin, lulin, lulin.
veremos, meu caro biloquinha, muito em breve, uma praça cheia de crianças, sorrindo e soprando gaitinhas de boca.
enquanto caramelo voltará aos pampas, dando acrobáticos pinotes, relinchando alegre e coiceando o ar.
oxalá caramelo desfrute, equinamente, a sua segunda chance: sem cargas, sem chicotes e sem carroças.
a galopes, crina ao vento, beiços moles, ventas largas e abertas, a inalar o verde frescor da campina.
nesse dia, colocarei na janela um par de sapatos floridos e eles ficarão lá, eternamente, como "dois velhos barcos abandonados à margem tranquila de um açude".
tudo passará, biloca.
e nós, passarinhos, latiu o cãozinho.
palavra da salvação.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.