Marx e Engels afirmam no Manifesto Comunista que “as ideias de liberdade de consciência e de liberdade de religião foram apenas a expressão do domínio da livre concorrência no campo do saber”.[1] Sendo assim, a liberdade de expressão se tornou legal não por ser um valor moral, mas por ser lucrativa para os negócios. Até porque é fácil administrar tal liberdade em uma sociedade que historicamente “as ideias dominantes de uma época sempre foram as ideias da classe dominante”.
Ou seja, quando vemos um indivíduo de direita defender o seu direito de incitar o ódio, de ser racista, misógino etc, ele está querendo ter o direito de falar algo que interessa a ele. Por que esses temas se alastram nas redes sociais e não as ideias de distribuição de terras e a posse dos sem-teto sobre edifícios desabitados, por exemplo? Porque são questões que assolam apenas a população pobre. Tais ideias nunca serão correntes, porque a liberdade de expressão não é dar direito a todos à fala, mas dar direito a todos falarem o que as ideias dominantes defendem.
Há uma passagem da “Aula”, de Roland Barthes, realizada em 1977 que, para mim, sempre parece atual: “Mas a língua, como desempenho de toda linguagem, não é nem reacionária, nem progressista; ela é simplesmente: fascista; pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer”.[2] Será por isso que a extrema direita defende tanto a liberdade de expressão?
Antes de Barthes, em uma aula de 1970, Foucault mostra como o discurso é controlado: “Suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade”.[3]
Pode parecer um paradoxo para muitos, mas a liberdade de expressão se tornou a maior forma de dominação no “regime de informação” que vivemos. Byun-Chul Han atualiza todas essas proposições sobre o discurso. Na sociedade da disciplina era necessário encarcerar. O enquadramento era utilizado para adestrar os corpos, torná-los dóceis. Hoje essa lógica se altera. “O sujeito submisso do regime de informação não é nem dócil, nem obediente. Ao contrário, supõe-se livre, autêntico e criativo. Produz-se e se performa”.[4]
No regime disciplinar, as pessoas são postas à vigilância sem o seu consentimento. No regime de informação, as pessoas se expõem voluntariamente. “As pessoas se empenham por si mesmas à visibilidade [...] Metem-se voluntariamente no foco de luz, até mesmo desejam isso, enquanto os reclusos do panóptico disciplinar procuram sair dele”.[5]
É nesse contexto que a liberdade de expressão é defendida pelas empresas de comunicação. Quanto mais se fala, mais dados são coletados e produtos são personalizadamente oferecidos. A liberdade de expressão, assim como Marx e Engels haviam falado sobre a liberdade de consciência e de religião, é apenas a expressão da livre concorrência no campo do saber.
Livre concorrência entre aspas já que a um grande monopólio da Meta, Alphabet, Apple, Microsoft e Amazon que controlam esse mercado da liberdade de expressão. O sociólogo Sérgio Amadeu é enfático ao dizer que “o capitalismo neoliberal do século XXI tem na dataficação um segmento de destaque e de alta lucratividade”.[6]
Os dados são o petróleo do século XXI, e quanto mais falamos nessas redes sociais, no teclado do celular, nos áudios trocados, mais expostos estamos, mais a nossa vida acadêmica, médica, íntima fica nas mãos de empresas que estão sistematicamente armazenando, processando e analisando o nosso estado emocional.
Talvez a verdadeira liberdade de expressão seria a liberdade de dizer o que não é parte das ideias dominantes. Posts deste tipo ficam em pequenos grupos. Reforma agrária, reforma urbana, democracia direta etc não fazem parte das ideias dominantes, por isso não têm o direito de circular. Portanto, para entender melhor a liberdade de expressão, não podemos nos contentar em analisar as ideias das quais os discursos são portadores, mas como circulam e ganham consistência em uma dada situação. E, hoje, os algoritmos promovem essa situação de circulação. A liberdade de expressão foi transformada (numa evolução escrota da dominação e do controle) na opressão algorítmica que, como a tradicional opressão, é sexista, racista, classista etc, mas fomenta todas essas atrocidades por meio da sensação de liberdade…
O matemático David Sumpter estava com um grupo em uma festa. Em um certo momento, em que seus interlocutores citaram Elon Musk, Sumpter explodiu e um dos pontos colocados por ele foi: “Computadores treinados em nossa linguagem fazem, de fato, associações sexistas e racistas, mas isso porque nossa sociedade é implicitamente preconceituosa. A maioria das buscas do Google dá a vocês, e ao restante da população, os resultados mais desinteressantes e acusados imagináveis. O maior problema com esse serviço é que ele está sobrecarregado com links sem sentido tentando fazê-lo ir à Amazon e comprar mais porcarias…” No fim, de suas palavras, todos olharam para Sumpter que concluiu: “Ah, e o Elon Musk é um idiota”.[7]
[1] MARX e ENGELS. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Martins Claret, 2006, p. 65.
[2] BARTHES, R. Aula. São Paulo: Cultrix, 1979, p. 14.
[3] FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996, p. 09.
[4] HAN, B-C. Infocracia. Petrópolis, RJ: Vozes, 2022, p. 09.
[5] Idem, p. 14.
[6] SILVEIRA, S. A. A hipótese do colonialismo de dados e o neoliberalismo. In: ____, CASSINO, J. e SOUZA, J. Colonialismo de dados. São Paulo: Autonomia Literária, 2021, p. 42.
[7] SUMPTER, D. Dominados pelos números. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2019, p. 266.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.