INTERSECÇÕES

Revolta da Chibata e dengue - Por Mouzar Benedito

Só vejo gente tentando combater as doenças, não os seus transmissores, os mosquitos

João Cândido, o "Almirante Negro".Créditos: Reprodução/Prefeitura de São João de Meriti
Escrito en OPINIÃO el

Desde o dia 11 de abril com uma dengue miserável, que me deixou prostrado (estou ainda) e sem condições de fazer nada, nem mesmo ler um livro, estou há mais tempo do que poderia imaginar vendo e lendo as mesmas notícias sendo repetidas.

Uma delas, do comandante da Marinha chiando por João Cândido, o “Almirante Negro”, ser considerado herói nacional.

Acho estranho. Militares em geral (não todos) e militaristas têm uma compulsão por negar malfeitos dos seus antecessores. Vejam a ditadura iniciada em 1964. Muitos milicos e – mais estranhamente – admiradores deles negam que tenha havido uma ditadura aqui, e babam de ódio quando alguém disse que houve sim, e que os ditadores e seus subordinados e adeptos cometeram muitos crimes.

Mais estranho ainda é negar um fato histórico acontecido há mais de um século, quando a Marinha continuava com uma prática inacreditável: punir fisicamente, inclusive com chibatadas, marinheiros de baixa patente que cometessem qualquer coisa que contrariasse as normas ou mesmo comportamentos impostos por seus “superiores”.

A Revolta da Chibata aconteceu em novembro de 1910, mas já vinha sendo inevitável bem antes. Marinheiros, principalmente negros “libertados” da escravidão, foram incorporados à Marinha, com baixos salários, péssimas condições de trabalho, com carga horária absurda e os castigos corporais, as chibatadas.

O estopim aconteceu em 22 de novembro, quando um marinheiro foi flagrado tentando entrar no encouraçado Minas Gerais, no Rio de Janeiro, com duas garrafas de cachaça. Logo veio a sentença: chibatadas! Mas quantas? Acreditem: 250 chibatadas, sem direito à assistência médica depois delas.

Iniciou-se então a revolta, liderada por João Cândido. Marinheiros tomaram não só o Minas Gerais, mas outros navios também, e bombardearam o Rio de Janeiro. Morreu gente inocente, inclusive duas crianças. Ah, se fosse hoje em dia, os marinheiros fossem israelenses e as crianças palestinas, estaria “tudo bem”.

O Senado, com projeto de Ruy Barbosa propôs que se concedesse anistia aos revoltosos. As reivindicações dos marinheiros foram aceitas pelo presidente Hermes da Fonseca, e eles se entregaram, mas o presidente não cumpriu a palavra. Ordenou que todos os marinheiros envolvidos fossem capturados. E eles foram presos e continuaram a revolta dentro da prisão numa base da Marinha na Ilha das Cobras. Bombardearam os prisioneiros e centenas deles morreram.

Em 24 de dezembro encarceraram centenas de marinheiros, dos quais, 441 foram levados para trabalhar nos seringais do Acre ou na construção da ferrovia Madeira-Mamoré, em que trabalhadores morriam aos montes, por doenças como a malária e más condições de trabalho, e que por isso era conhecida como “Ferrovia do Diabo”. Outros 18 foram colocados numa prisão onde, para completar, jogaram cal virgem nas celas. No dia seguinte, Natal de 1910, só João Cândido havia sobrevivido entre eles. O “Almirante Negro” acabou sendo absolvido das acusações que lhe faziam em dezembro de 1922, mas foi expulso da Marinha, que devia hoje tratar isso como um erro do passado. Mas nunca admitiu isso.

Em 1934, o jornalista e humorista Apparicio Torelli, que mais tarde se declararia “Barão de Itararé”, começava a publicar no Jornal do Povo a biografia de João Cândido, e isso provocou a ira de oficiais da Marinha que o prenderam mais uma vez (ele era preso frequentemente), com violência ainda maior que as de outras vezes, o torturaram e o ameaçaram de morte. Sequestraram o jornalista e o levaram à força para a estrada da Gávea, onde o espancaram com violência desmedida, raparam seu cabelo e o deixaram pelado. Ele voltou para a redação do jornal e colocou a famosa plaquinha na porta de sua sala: “Entre sem bater”, como um recado à polícia e aos militares que entravam na sua sala batendo nele. A plaquinha tem significado muito diferente hoje, não?

O jornal não sobreviveu. A marinha anunciou “um rigoroso inquérito” para apurar a agressão, mas como outros “rigorosos inquéritos” comuns no Brasil, não se chegou a nada e ninguém foi punido.

E a dengue com isso?

Bom, comecei aqui falando que estou com dengue e tenho raiva não só pelo sofrimento que ela causa a mim e milhares de brasileiros. Era para não existir mais dengue no Brasil. Não houve aqui uma “Revolta da Dengue”, mas houve, antes da Revolta da Chibata, a “Revolta da Vacina”, durante um surto de febre amarela (causada pelo mesmo maldito mosquitinho da dengue) que arrasou o Rio de Janeiro, matando gente aos montes, e o sanitarista Oswaldo Cruz determinou a obrigatoriedade da vacinação.

O maldito Aëdes ægypt, como o nome indica originário do Egito, chegou aqui no século XVI, em navios negreiros. Não existia em terras brasílicas antes disso. E ele se espalhou.

A dengue, transmitida por ele, chegou no século XIX, em Curitiba, não se sabe como, com alguns doentes vindos do exterior. Daí virou uma desgraça.

O Aëdes ægypt transmite várias doenças, como as recentes Chikungnya e Zika. Mas também a febre amarela que, como já disse, assolou o Rio de Janeiro no início do século XX. Além da vacinação obrigatória, Oswaldo Cruz criou em 1903 o serviço de mata-mosquitos, para acabar com os malditos. Deu certo. Em 1908 já não existia mais febre amarela aqui.

O serviço continuou existindo funcionando bem, a cargo da Sucam – Superintendência de Campanhas de Saúde. Mata-mosquitos iam de casa em casa borrifando inseticida. Em 1958, a Organização Pan-Americana de Saúde declarou extinto o Aëdes ægypt no Brasil. Mas como sempre acontece aqui, o serviço relaxou e na década seguinte eles voltaram. Em 1986/87 uma epidemia de dengue deixou brasileiros com muito medo.

Para piorar, em 1990 o governo Collor acabou com a Sucam, que abrigava os mata-mosquitos, e o resultado foi um crescimento geométrico dos casos de dengue. O serviço foi transferido para a Funasa (Fundação Nacional de Saúde) subordinada ao Ministério da Saúde e, durante o governo FHC, o ministro Adib Jatene fez um plano audacioso de combate ao mosquito e às doenças transmitidas por ele, mas Jatene foi substituído e o plano abandonado.

O número de vítimas da dengue diminui um pouco até que em 1998 o ministro José Serra, substituto de Adib Jatene, demitiu quase 6 mil mata-mosquitos no estado do Rio, passando a responsabilidade para prefeituras que não tinham estrutura para isso e foi um desastre. Queriam só a verba destinada para isso pelo governo federal. O número de vítimas da dengue no Brasil, que havia baixado de 558 mil em 1998 para 209 mil, começou a subir de novo no ano seguinte, e em 2001 chegou a 400 mil e continuou aumentando.

Em 2015/16, o problema do Aëdes ægypt se agravou por causa da chamada crise hídrica, que levou a população a armazenar água em baldes, tanques etc., e levou criadouros de larvas para dentro de casa.

E a desgraça progrediu, até chegar à tragédia em que estamos.

Enfim, o sofrimento que estou vivendo, como um porrilhão de brasileiros, tem culpados, além do mosquito maldito. Só vejo gente tentando combater as doenças, não os seus transmissores, os mosquitos. Sim, fazem campanhas de “esclarecimento” para que a população acabe com criadouros do mosquito em suas casas, mas e daí?

Gente, sinto um certo saudosismo ao lembrar da determinação de Oswaldo Cruz e um governo que o levou a sério. E Adib Jatene? Não foi tolerado pelo governo que se dizia socialdemocrata.

PS: Para escrever esse texto gastei vários dias, desde que vi notícias do comandante da Marinha criticando a outorga de herói nacional a João Cândido. Fico 10 minutos diante do computador, o corpo começa a doer, principalmente nas juntas (do ombro, por exemplo) e mais uns 5 minutos depois tenho que deitar de novo.

Já tive um monte de tranqueiras. Da meningite, não me lembro, era bebê. A gripe asiática me pegou quando completava 11 anos e foi muito ruim. Tive cálculos renais muito ruins, doloridos pra burro, duas Covids... Mas nunca me senti tão no bico do corvo (e por tanto tempo) como com esta maldita dengue. Cuidem-se!

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.