OPINIÃO

Uma distopia chamada Brazil: Parte 2 - Francisco Fernandes Ladeira

Se, em “Fahrenheit 451”, livros eram queimados, os 'distopiclovers' economizam combustível; jogam obras literárias, consideradas não condizentes aos valores da família tradicional cristã, diretamente em latas de lixo

Fahrenheit 451 - imagem ilustrativa.Créditos: Reprodução
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No início do ano, escrevi um artigo com a professora Aurélia Peixouto – intitulado “Uma distopia chamada Brazil” – em que apontamos o quão surreal foi o contexto de um país governado pelo “minto”. Uma realidade tão deplorável, que nem Aldous Huxley, George Orwell ou Ray Bradbury poderiam imaginar.

No entanto, mesmo com o líder de distopia fora do poder e inelegível (ainda bem!), seus fiéis seguidores – também conhecidos como distopiclovers – (infelizmente) continuam protagonizando situações patéticas e bizarras. Caso fôssemos defini-los em uma palavra, seria “incoerência”.

Os distopiclovers se consideram patriotas, porém são favoráveis à entrega do patrimônio brasileiro para grandes capitalistas internacionais. Abominam a vacinação obrigatória, pois querem “ter direito sobre o próprio corpo”, mas quando uma mulher decide fazer aborto, dão chilique. Dizem ser favoráveis à liberdade de expressão, mas pedem ditadura militar.

Defendem a tradicional família cristã, porém não raro possuem amantes e mais de uma família. Consideram Jesus como Salvador, mas fazem apologia à tortura. Fazem atos pela “democracia” pedindo golpe de Estado. São contrários à doutrinação comunista nas escolas, mas defendem proselitismo religioso e conteúdos do Brasil Paralelo em sala de aula. Citam o versículo bíblico “conhecerão a verdade, e a verdade os libertará” e logo após compartilham fake news no grupo de zap.

Se, em “Fahrenheit 451”, livros eram queimados, os distopiclovers economizam combustível; jogam obras literárias, consideradas não condizentes aos valores da família tradicional cristã, diretamente em latas de lixo.

Já nas mobilizações convocadas pelo “minto” (eventos também conhecidos como CarnaGado, FestGado ou Micareta Fascista) temos os palcos privilegiados para os delírios distópicos. Por lá podemos encontrar o deputado federal que pede por homens com mais testosterona, teorias da conspiração que alegam fraude na eleição de 2022 para prejudicar o “minto” (com apoio do STF) e as senhoras distopiclovers que declaram publicamente apoiar Israel, pois a população daquele país, assim como elas, (supostamente) professa o cristianismo. O fato de os israelenses, em sua esmagadora maioria, serem judeus, portanto não aceitam Jesus como Messias, é mero detalhe. Distopiclovers possuem suas próprias narrativas sobre a realidade, vindas diretamente de grupos de WhatsApp, e isso é o que importa.

Como bons cidadãos de bem, distopiclovers também não aceitam a “ditadura gayzista” imposta pelo governo comunista do PT. Nesse sentido, uma mulher seguidora do “minto” foi flagrada insultando e agredindo fisicamente um casal de homossexuais em uma padaria. No repertório de xingamentos, clássicos de distopia: “mimimi”, “eu sou de família tradicional” e “os valores estão sendo invertidos”. Já os proprietários de uma papelaria se recusaram a fazer os convites para um casamento entre homens. A recusa não seria por discriminação, mas questão de “valores e princípios”. Após o caso repercutir negativamente nas redes sociais, os donos da empresa alegaram sofrer “heterofobia”.

Para os distopiclovers, mulheres são “frutos de fraquejada” e devem ser “submissas ao homem”, logo podem ser assediadas e molestadas em qualquer tipo de ambiente. Foi o caso de um empresário seguidor do “minto”, que importunou sexualmente uma mulher no elevador do prédio onde trabalha. Como o caso repercutiu nacionalmente, ele alegou ter “problema psiquiátrico”, prática comum entre distopiclovers para não assumirem seus erros.

Quando um bilionário estrangeiro, proprietário de uma conhecida rede social, atacou a soberania de seu país, os distopiclovers não tiveram dúvida: por afinidades ideológicas, à extrema direita, apoiaram o bilionário, ou seja, um patriotismo farsesco. Trata-se da campanha global contra a “ditadura judiciária/comunista do PT/Xandão”, em nome da “liberdade de expressão”.

Só que a “liberdade de expressão”, para os adeptos de distopia, é a liberdade para insultar as minorias, propagar discursos de ódios, convocar golpe de Estado pela internet, destruir as sedes dos três poderes da República e, é claro, divulgar suas clássicas fake news. Quem possui pensamentos contrários aos preceitos ideológicos dos distopiclovers, evidentemente, deve ser censurado (com são os casos das postagens favoráveis à causa palestina no Instagram, Facebook e X).

E assim os distopiclovers, com suas camisas amarelas da CBF, vão defendendo a todo o custo o legado do “minto”, marcado por negacionismo, entreguismo e delírios terraplanistas. Não podem ver uma vergonha; querem logo passar. São memes prontos. Como eles não possuem limites para o grotesco, provavelmente uma sequência para este texto será necessária. Lembrando Zé Ramalho: “Eh, oô, vida de gado”. Seria cômico se não fosse trágico.

*Francisco Fernandes Ladeira é doutorando em Geografia pela Unicamp

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.