OPINIÃO

ChatGPT arrasando

Inovações aumentam a produtividade do trabalho humano, beneficiando os consumidores. Uma parte expressiva desses consumidores, porém, compete com a nova tecnologia e acaba desempregada. 

Créditos: Sanket Mishra/Pexels
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Gosto de falar, de vez em quando com os meus leitores mais antigos. Nem sei se de fato existem e se ainda estão vivos e alertas, e talvez fique falando sozinho. Mas imagino que esta pequena crônica chegará a alguns deles. Então, eis o que queria perguntar a vocês: será que se lembram de um sobrinho criativo e algo folclórico que figurou em alguns artigos e também, de passagem, no meu livro mais recente, O Brasil não cabe no quintal de ninguém? Pois ele vai ser o personagem central hoje. Antes, porém, é melhor fazer uma rápida recapitulação para situar o personagem nas suas “circunstâncias sociais e históricas”, como diria um sociólogo ou historiador das antigas.

Trata-se de um rapaz inteligente e possuidor de um grande senso de humor. Quando ingressou, há mais de dez anos, como estagiário num banco de investimento em São Paulo, sofreu, entretanto, uma fulminante conversão ao ideário da turma da bufunfa. Bem que sei que este grupo não tem propriamente ideias e, assim, “ideário” é um termo impróprio. Mas como todo agrupamento socioeconômico, a turma da bufunfa cultiva seus conceitos ou, melhor dizendo, preconceitos. Pois o sobrinho passou a defender, com fervor, todos esses preconceitos. Encantou-se, por exemplo, com “a taxa de juro de equilíbrio”, aquela variável não observável, leitor, inferida por modelos, que supostamente determina o nível adequado dos juros, isto é, aquele que assegura a convergência da inflação para determinadas metas. Essa taxa de equilíbrio serve, na verdade, para o despropósito de justificar os juros pornográficos que o Banco Central praticava naquela época e quase sempre pratica. Com o entusiasmo dos novatos, o sobrinho argumentava insistentemente que os “modelos” mostravam inequivocamente que a taxa Selic de equilíbrio seria de 10% ao ano em termos reais! 

Passou. Atualmente, este sobrinho é um empresário de sucesso na área educacional, revelando-se uma das poucas pessoas da família que sabem ganhar dinheiro. A nossa família, dominada por políticos (honestos) e artistas, é uma verdadeira negação em matéria financeira. Paulinho é uma exceção. Não havia dito que ele é meu xará? Esqueci. Ele é quase meu homônimo, o que me causava alguns constrangimentos, devo dizer. O motivo é que ele costumava mandar cartas aos jornais e publicar alguns artigos, sempre assinados Paulo Nogueira Batista, São Paulo, SP, ocasiões em que desancava a esquerda e atacava conhecidos meus, às vezes duramente. Eu, que também morava em São Paulo na época, tinha que sair explicando que o autor das cartas e artigos não era eu, e sim um sobrinho neoliberal. Depois de muita reclamação minha, hoje ele assina Paulo Batista.

Enfim, vamos ao ponto. No aniversário da minha mãe, que completou 94 anos há pouco, reuniu-se a família toda, numerosa, feliz e barulhenta. Paulinho não podia faltar e nem mania de quase sempre dar uns tecos no tio progressista. Dessa vez, escolheu um caminho que se mostraria um pouco constrangedor para ele. Constrangedor, mas pedagógico. 

O que aconteceu foi emblemático e impressionante, pelo menos para uma pessoa como eu, que faz parte de uma geração que acompanha com certa dificuldade o rápido progresso tecnológico do século 21. O incidente que passo a relatar revela, acredito, o imenso potencial da inteligência artificial. 

Ocorre que, em maio do ano passado, fui apresentado de maneira ultra simpática a essa nova tecnologia. O jornalista Pedro Cafardo, do Valor Econômico, perguntou ao ChatGPT quem eram os dez maiores economistas brasileiros de todos os tempos. E publicou os resultados.  Entre os dez maiores, para a minha surpresa, figurava o meu nome como décimo da lista. Era o lanterninha, mas dei mesmo assim os proverbiais arrancos triunfais de cachorro atropelado, como diria Nelson Rodrigues. Mas houve mais. O jornalista repetiu a pergunta ao ChatGPT e o meu nome voltou a aparecer, desta vez em sexto lugar! Apenas outros quatro economistas (Celso Furtado, Mario Henrique Simonsen, Maria da Conceição Tavares e João Paulo dos Reis Velloso) apareceram nas duas listas, ambas encabeçadas por Furtado, realmente o nosso maior economista , o que conferia certa plausibilidade às respostas da inteligência artificial.  

O meu nome, entretanto, realmente destoava. Devo reconhecer. Meu sobrinho, assim como outros familiares neoliberais e bolsonaristas, haviam recebido com grande ceticismo a lista do ChatGPT. Paulinho resolveu então, para divertimento geral, repetir a pergunta: “Quem são os dez maiores economistas brasileiros de todos os tempos?”. Leitor, não é que voltei a aparecer, agora como 5º colocado! A minha fé na inteligência artificial crescia de cinco em cinco minutos.    

Mas o sobrinho não se deu por vencido. Fez nova pergunta: “Quais são os critérios para a elaboração da lista?”. O ChatGPT deu resposta sensata e defensiva, esclarecendo que considera uma combinação de fatores, incluindo contribuições acadêmicas, influência nas políticas econômicas brasileiras, publicações relevantes e reconhecimento internacional. Ressalvou, contudo, que a seleção é subjetiva, podendo variar de acordo com os critérios de cada pessoa. 

Paulinho insistiu outra vez: “Mas Paulo Nogueira Batista Jr. não é uma figura menor?”. Pergunta ligeiramente insolente. Vejam, entretanto, a resposta do ChatGPT! Foi um tapa com luva de pelica: “Ele é frequentemente reconhecido por suas contribuições significativas para a economia brasileira, tanto em termos acadêmicos quanto em sua carreira internacional. Ocupou cargos importantes em instituições financeiras internacionais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco dos Brics (Banco de Desenvolvimento dos Brics). Além disso, suas análises econômicas e críticas políticas têm impacto considerável no debate público sobre questões econômicas no Brasil.”  

Não pense, leitor, que estou aqui fabulando e contando vantagem. Foi exatamente assim. Tenho os prints do diálogo e posso mostrá-los.

Mas o melhor ainda estava por vir. Paulinho tentou uma última pergunta, também meio insolente: “Mas ele não é antissemita?”. A resposta foi acachapante: “Não há evidências substanciais para afirmar que Paulo Nogueira Batista Jr. seja antissemita. Ele é conhecido por suas opiniões políticas e críticas às políticas econômicas internacionais, especialmente em relação a instituições financeiras globais como o FMI. No entanto, é importante separar críticas políticas legítimas de acusações infundadas de preconceito. É crucial basear-se em informações verificáveis e em fontes confiáveis ao fazer avaliações sobre indivíduos públicos.”

Nocaute! Uma pequena aula. O sobrinho neoliberal rodopiou e beijou a lona. Aí o assunto morreu rapidinho (há poucos progressistas na família). Mas convenhamos, para além dos aspectos estritamente folclóricos, pessoais e familiares, não é incrível o desempenho da inteligência artificial? Nesse episódio, ressalte-se, o aplicativo não se limitou a coletar informações na rede, como às vezes se afirma para desqualificá-lo. Ao responder, o ChatGPT foi ponderado e se deu ao luxo de dar algumas lições ao humano.

A verdade é que a inteligência artificial tende mesmo a deixar a natural no chinelo. Cada vez mais. No fundo, é a repetição de um padrão histórico recorrente e conhecido em suas linhas gerais. Inovações aumentam a produtividade do trabalho humano, beneficiando os consumidores. Uma parte expressiva desses consumidores, porém, compete com a nova tecnologia e acaba desempregada. 

Com a inteligência artificial, todas as atividades intelectuais rotineiras, e mesmo as não rotineiras, correm o risco de se tornar redundantes. Difícil imaginar uma área que não sofra ou venha a sofrer o seu impacto – como sempre, benéfico para os usuários e prejudicial para aqueles que ficam obsoletos. 

Imagine, por exemplo, leitor que a Carta Capital decida me desempregar. Lança o tema da sua preferência e pede ao ChatGPT ou outro aplicativo semelhante: “Escreva um artigo à moda de Paulo Nogueira Batista sobre esse tema.” O artigo sairá mais rapidamente e talvez melhor do que os meus próprios textos. 

Meio assustador. Só nos resta esperar que a inteligência artificial também tenha limites ou que saibamos administrar o seu impacto disruptivo na economia e na sociedade. E, em especial, que o seu progresso não seja tão rápido e profundo que a leve a descobrir que, de fato, como desconfia meu sobrinho, não faz sentido me incluir no top 10 dos economistas brasileiros. 

Uma versão resumida deste texto foi publicada na revista Carta Capital.

Paulo Nogueira Batista Júnior é economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, de 2015 a 2017, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países em Washington, de 2007 a 2015. Lançou no final de 2019, pela editora LeYa, o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém: bastidores da vida de um economista brasileiro no FMI e nos BRICS e outros textos sobre nacionalismo e nosso complexo de vira-lata. A segunda edição, atualizada e ampliada, foi publicada em 2021.

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