O presidente Lula recentemente deu uma infeliz e preocupante declaração ao diminuir a importância de falarmos sobre memória, verdade justiça e reparação. É lamentável o posicionamento do presidente Lula às vésperas dos 60 anos do golpe empresarial militar de 1964. Quando o presidente diz que não vai “remoer o passado”, ele fecha os olhos para as graves violações de direitos humanos cometidas pelas Forças Armadas, já que nunca responderam pelas mortes, torturas, ocultação de cadáveres e desaparecimentos forçados durante os 21 anos de ditadura. E os efeitos são sentidos até hoje nas violências e assassinatos cometidos pelo Exército e que são abrandadas e tantas vezes absolvidas pelo Superior Tribunal Militar.
Além de seguirem protegidos pela Lei de Anistia de 1979, tampouco abriram seus arquivos para que centenas de famílias saibam o que aconteceu com seus pais e mães, as suas filhas e seus filhos, irmãs, irmãos, amigas e amigos. Presidente Lula, onde estão nossos mortos vítimas de crimes políticos? Responder essa pergunta deveria ser uma prioridade para todas as pessoas comprometidas com os valores democráticos, com a justiça, memória e reparação.
Me dói na alma ler uma declaração dessas às vésperas dos seis anos do assassinato de minha esposa, a vereadora Marielle Franco, e de seu motorista, Anderson Gomes, já que seguimos sem conhecer a cadeia de comando desse crime, mas sabemos do papel que as práticas da ditadura civil, militar e empresarial, se perpetuaram e estão presentes nos grupos de extermínio por todo país.
Posturas como essas vindas de um chefe de Estado (e não qualquer um, mas um líder do campo da esquerda, com um histórico incomparável de lutas sociais) são uma autorização social e política para a matança dos que lutam pela democracia. É de se envergonhar profundamente.
Esse "comando de esquecimento", conceito desenvolvido pela doutora em direito e sociologia Nadine Borges, retrata exatamente a fragilidade da democracia em nosso país. Lula se equivoca ao pensar que não remoer o passado de 1964 garantirá justiça para os golpistas do 8 de janeiro. Ele mesmo antecipa a anistia aos golpistas com sua declaração. Parece, inclusive, que tal declaração é um chamado a negociatas em troca de votos no Congresso. A tal "pacificação" defendida por golpistas não virá com anistia, com o esquecimento da tentativa de retomar um período sombrio e tenebroso no Brasil. Ao contrário, é preciso lembrar cotidianamente dos horrores cometidos pela ditadura, é preciso falar em alto e bom tom que não deve haver tolerância com aqueles que atentam contra a democracia e a liberdade do povo.
A nós, defensoras e defensores de direitos humanos e pessoas comprometidas com a memória coletiva do nosso país, cabe resistir e denunciar a omissão do Estado desde a redemocratização, em não exigir resposta e transformação das Forças Armadas.
Usar o 8 de janeiro de 2023 como desculpa para fazer, apenas no presente, uma eventual investigação contra meia dúzia de altas patentes que sempre serão, em última instância, protegidas pelo poder Judiciário, é uma ameaça ao futuro das novas gerações de jovens pretos e pobres que poderiam viver em um país mais justo e igualitário. Um país em que a tortura e o tiro de fuzil à queima-roupa não fossem resultado de uma existência marcada por um Estado que mata e se recusa a responsabilizar agentes públicos que cometeram e cometem, nos dias atuais, graves violações de direitos humanos.
Lutar por memória, verdade, justiça e reparação é lutar por um futuro digno, onde a injustiça social não seja a regra. Somente um povo que conhece sua própria história será capaz de fazer a revolução. Mas talvez, para alguns, o problema esteja exatamente aí.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.