60 ANOS DO GOLPE DE 1964

O golpe de 1964, os golpes de 2016/18 e os de 2022/23 são a mesma coisa - Por Mauro Lopes

Há 70 anos, desde 1954, os militares empreendem tentativas sucessivas de golpes de Estado. Os movimentos golpistas de 1954, 55, 56, 59, 61, 64, 2016, 2018, 2022 e 2023 são contas de um único colar, cujo fio é a história do país. As Forças Armadas brasileiras são estruturalmente golpistas

Tanques diante do Congresso em 1964 e bolsonaristas no ataque em 2023.Créditos: Senado Federal / Wikimedia Commons
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Os golpes militares, vitoriosos ou derrotados, não são irrupções extraordinárias, eventos episódicos no país. Eles são uma linha contínua, ininterrupta, da ação das Forças Armadas no cenário nacional. Mais que isso, todas essas tentativas, exitosas ou não, guardam relação íntima entre si. Um golpe é sempre a continuidade do anterior ou dos anteriores, mesmo que os personagens individualmente sejam outros. 

Uma comparação que talvez ajude a entender como os golpes militares se inserem no país: pense numa corrida olímpica de revezamento, na qual um corredor passa o bastão para o seguinte. São duas modalidades nas Olimpíadas: revezamento 4 x 100 e revezamento 4 x 400. São provas rápidas. 

No caso dos golpes militares, eles são como uma prova de revezamento longa, longuíssima. 

Dez anos de tentativas até a vitória em 1964

Na história contemporânea brasileira, o “tiro de largada” para essa prova cujo fim não se vislumbra no horizonte é 1954. O bastão dos militares de 1954 foi passado em 1955, em 1956, em 1959, em 1961 e novamente em 1964. Com a vitória do golpe em 1964, o “atleta” passou o bastão apenas em 2016/2018, que o entregou em 2022 e mais uma vez em 8 de janeiro de 2023.

Ilude-se quem imagina que o golpe de 1964 foi uma ação fulminante de sucesso incontrastável organizada durante poucos meses. Não. 1964 foi a sexta tentativa militar de golpear a democracia brasileira.

A primeira delas, em 1954, quando os militares lançaram um manifesto no qual exigiam a renúncia imediata de Getúlio Vargas como única alternativa ao golpe em articulação. A tentativa foi contida pelo suicídio de Getúlio, que mobilizou o país contra os golpistas.

A segunda tentativa fracassada ocorreu em novembro de 1955, com o objetivo de impedir a posse de Juscelino Kubitschek, que havia vencido a eleição no mês anterior. O golpe foi derrotado em 11 de novembro pela ação fulminante do general Henrique Teixeira Lott, num tempo em que ainda havia militares democratas e legalistas.   

Militares da Aeronáutica receberam o bastão dos derrotados de novembro e em fevereiro de 1956 encetaram a terceira tentativa, a Revolta de Jacareacanga. O movimento era aparentemente sem expressão, mas prolongou-se por 19 dias. Um major e um capitão tomaram um avião na Base Aérea do Rio de Janeiro e voaram até Santarém, onde tomaram a Base Militar de Jacareacanga e mais alguns pequenos povoados nas cercanias de Santarém. A revolta prolongou-se pela recusa das Forças Armadas de sufocar os rebelados, como aconteceu novamente na tentativa de golpe de 2022/23, quando os militares recusaram-se a desmontar os acampamentos em frente aos quarteis.

A quarta tentativa foi a Revolta de Aragarças, entre 2 e 4 de dezembro de 1959. Os golpistas atuaram sob comando do major aviador Haroldo Coimbra Veloso, aquele mesmo de Jacareacanga, e do tenente-coronel João Paulo Moreira Burnier. Sequestraram cinco aviões e os desviaram para a base militar de Aragarças, em Goiás, esperando que o levante militar se espalhasse, o que não aconteceu.

Em 1961, depois da renúncia de Jânio Quadros, a quinta tentativa: as Forças Armadas levantaram-se contra a posse de João Goulart. Jango, como ficou conhecido, estava liderando uma missão comercial brasileira na China no momento da renúncia. No lugar de Jânio, assumiu interinamente o presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli, mas o poder real ficou nas mãos dos ministros militares, o marechal Odílio Denys, da Guerra, vice-almirante Sílvio Heck, da Marinha, e o brigadeiro do ar Gabriel Grün Moss, da Aeronáutica. Constituindo na prática uma junta militar, os três romperam a ordem jurídica e vetaram a posse do vice-presidente Mazzilli operou como um testa de ferro ou laranja do golpe em curso a partir de 25 de agosto de 1961. Houve manifestações, greves e firme oposição de líderes políticos progressistas. Naquele momento, avultou-se a figura de Leonel Brizola, então governador do Rio Grande do Sul. Brizola mobilizou a população, a Brigada Militar do Rio Grande do Sul e as emissoras de rádio, constituindo a "Cadeia da Legalidade" que teve adesão de emissoras de todo o país e decisiva para derrotar os golpistas -além da divisão nas próprias Forças Armadas

Os militares derrotados pela Campanha da Legalidade, que haviam pego o bastão dos derrotados das quatro tentativas de golpe anteriores, entregaram-no aos golpistas de 1964. Então, finalmente, o golpe venceu, depois de cinco tentativas em 10 anos, e a junta militar derrotada pela mobilização em 1961 assumiu o poder. 

Da mesma maneira que Lula agora, JK quis “virar a página” e nenhum militar envolvido nas articulações golpistas de 1954, 55, 56 e 59 foram punidos, nem as datas das tentativas de golpe anteriores tornaram-se referências para seu governo. Um exemplo dos resultados deste “virar a página”: assim como o major aviador Haroldo Coimbra Veloso foi a alma do golpe em Jacareacanga e depois em Aragarças, seu principal parceiro, o tenente-coronel João Paulo Moreira Burnier teria um papel de destaque em outro golpe, o vitorioso em 1964. Burnier, que chegou a brigadeiro, entre outras atividades sanguinárias, foi comandante da 3ª Zona Aérea, sediada no Rio de Janeiro. Ele foi o responsável pela prisão, tortura e morte de dezenas de pessoas, entre elas Rubens Paiva, Stuart Angel Jones e Anísio Teixeira. Um militar de alta patente descreveu Burnier "um insano mental inspirado por instintos perversos e sanguinários, sob o pretexto de proteger o Brasil do perigo comunista". Considerado um líder pela cúpula militar, acabou sendo reformado e transferido para a reserva por pressão do governo dos EUA, pois Stuart Angel Jones era cidadão daquele país.

A expressão corrente é “golpe de 1964”, mas talvez o mais adequado fosse identificar o que aconteceu como o movimento golpista 1954/1964 quando, afinal, sagrou-se vitorioso. Nesse caso, em vez de falar em 60 anos do golpe, deveríamos falar de 70 anos de movimento golpista e 60 anos de sua vitória. 

Há outra questão a ser considerada nesta maneira de encarar a linha ininterrupta da ação das Forças Armadas estruturalmente golpistas. 1964 é a data da vitória do movimento que se arrastou por 10 anos. Quando se fala de “golpe de 1964” devemos considerar que, uma vez vitorioso, ele tornou-se no golpe de 1964, 65, 66… até 1985, quando ele foi finalmente derrotado e se restaurou a democracia. 

Os golpes de 2016-2018

Durou 31 anos a experiência democrática, marcada por episódios de grande tensão. Até que o bastão de 1964 foi passado aos golpistas de 2015/2016. A aprovação no Senado do impeachment de Dilma Rousseff foi apenas a faceta parlamentar de um movimento urdido e levado a cabo pelos militares -sem eles, não haveria impeachment. Da mesma maneira que em 1964, coube aos militares e ao Congresso papeis específicos no golpe, com méritos distintos em cada caso. Foi 2016 um golpe militar? Quem o reconhece é ninguém menos que o coroado pelo golpe, Michel Temer. Em seu livro “A Escolha”, de 2020, ele relatou os encontros de caráter conspiratório que manteve com a cúpula do Exército quando ainda era vice-presidente. Dos encontros participaram pelo menos o então comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, e o chefe do Estado-Maior, general Sérgio Etchegoyen. Vitorioso o golpe, Temer manteve Villas Bôas no cargo e nomeou Etchegoyen ministro do recriado Gabinete de Segurança Institucional (GSI). Tais encontros, ecoados por Villas Bôas e Etchegoyen no Alto Comando do Exército e de lá para os políticos em Brasília e para a liderança empresarial,  foram combustível para a articulação parlamentar que sacramentou a derrubada de Dilma.

Da mesma maneira que houve um “golpe dentro do golpe” depois de 1964, com a edição do AI-5 em dezembro de 1968, houve igualmente um “golpe dentro do golpe” em 2018.  Em dois posts ameaçadores no Twitter, Villas Bôas informou ao STF e, consequentemente, ao universo político-institucional brasileiro, que um habeas corpus a Lula, que viabilizaria sua candidatura presidencial nas eleições de outubro, era inaceitável para os militares. Por 6 a 5 o habeas corpus não foi concedido. Não foi um ato isolado do então comandante do Exército: o texto dos dois tuítes foram submetidos e aprovados pelo Alto Comando do Exército, que reúne o próprio comandante da Força e os generais de quatro estrelas na ativa. Quatro meses depois, em agosto, o “golpe dentro do golpe” teve continuidade na AMAN, a Academia Militar das Agulhas Negras. Bolsonaro foi recebido como virtual presidente da República na cerimônia de entrega de espadins aos cadetes que se formavam. Vários militares de alta patente estavam lá. Entre eles, ninguém menos que o general Sérgio Etchegoyen, colíder do golpe de 2016.

As tentativas de 2022-23 e as que virão

Os golpistas do ciclo 2016/2018 finalmente passaram o bastão para as duas tentativas de golpe mais recentes, as de 2022/2023. As duas fracassaram, mas a história contemporânea das Forças Armadas indica que elas foram apenas duas tentativas iniciais de novas que virão à frente.

O bastão de 1954 foi passado de mão em mão, de geração em geração de militares, ininterruptamente. Quem imagina que o bastão de 2022/2023 não será passado adiante não entendeu nada da história do país. 

Por isso, é grave, muito grave a decisão do presidente Lula de proibir manifestações de integrantes de seu governo sobre os 60 anos do golpe de 1964. Lula disse em várias manifestações que quer “virar a página”, que não quer “ficar remoendo sempre”, que está “mais preocupado com o golpe de 8 de janeiro de 2023 do que com 64”.

O presidente presta um desserviço à democracia, se ilude e tenta iludir o país. Pois os militares não viraram página alguma e ficam remoendo sempre, como ficaram remoendo por 31 anos entre 1985 e 2016. Pior ainda, quando o presidente afirma que 1964 “já faz parte da história” e que  está “mais preocupado com o golpe de 8 de janeiro de 2023 do que com 64”, desconsidera que janeiro de 2023 é a continuidade histórica de 1 de abril de 1964 que por sua vez é a continuidade das cinco tentativas fracassadas desde 1954. 

Quem de fato preocupa-se com o que ocorreu em 2022 e janeiro de 2023 mantém muito viva a memória de 1964. Na verdade, mantém muito viva a memória de 1954, 55, 56, 59, 61, 64, 2016, 2018, colada com a memória de 2022/8 de janeiro de 2023. Todas estas datas são contas de um único colar, cujo fio é a história do país.

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Uma lista impressionante: de nove presidentes eleitos desde 1945, cinco foram derrubados pelos militares ou sofreram tentativas de golpe. Não foram golpeados apenas Dutra, Collor, FHC e Bolsonaro -este último um dos líderes dos golpes 2022/23. Foram 10 golpes ou tentativas desde 1954. Obs: João Goulart foi eleito vice-presidente em 1960, quando havia voto separado para presidente e vice - assumiu com a renúncia de Jânio Quadros.

 

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Os casos  Etchegoyen e  Villas Bôas: uma nota final

Uma nota final sobre o general Sérgio Etchegoyen e o general Villas Bôas, que ilustram o caráter estrutural do golpismo das Forças Armadas ao longo da história.

Como o tenente-coronel e depois brigadeiro João Paulo Moreira Burnier, não foram poucos os militares que participaram de mais de um golpe ou tentativa de golpe ao longo da história.

O general Villas Bôas é o grande líder militar do século 21. Ele é como um Pinochet brasileiro, que traiu a presidente que o nomeou. Seu colega chileno foi nomeado comandante do Exército por Salvador Allende em 1973 e poucos meses depois iria traí-lo e à democracia liderando o sangrento golpe de Estado no Chile. Villas Bôas foi nomeado por Dilma Rousseff comandante do Exército em 2015 e a apunhalou também poucos meses depois, liderando o ciclo golpista de 2016-2018. Ele acabou desempenhando um papel chave novamente em 2022-23. Embora atado a uma cadeira de rodas por conta da esclerose lateral amiotrófica, ele foi um líder inspirador para os golpistas. Sua esposa, Maria Aparecida, esteve por diversas vezes no acampamento golpista diante do QG do Exército, em Brasília. Importante sublinhar que os militares são eles mesmos e suas famílias. O conceito de “família militar” prevê que quando um militar, especialmente da ativa, não pode se manifestar, sua esposa ou marido, pais, tios, sobrinhos ou filhos fazem-no por ele e o corpo fardado entende o recado. Em uma dessas vezes, Maria Aparecida desfilou na avenida entre o acampamento e o QG numa van adaptada para transporte de pessoas com deficiência. Ao passar à frente do acampamento, apontou para o fundo do carro, indicando que lá estava o general Villas Bôas em pessoa.

Quanto ao general Sérgio Etchegoyen, que liderou ao lado de Villas Bôas o ciclo de 2016-18, o caso de sua família é exemplar do caráter estrutural do golpismo que constitui as Forças Armadas brasileiras. A família Etchegoyen liderou golpes de Estado fracassados ou bem sucedidos desde os anos 1950 e pelo menos dois de seus integrantes participaram dos porões da ditadura de 1964, a exemplo do brigadeiro João Paulo Moreira Burnier.

O avô de Sérgio, o general Alcides Gonçalves Etchegoyen participou do golpe contra Getúlio em 1954 e, no ano seguinte, foi um dos líderes da tentativa de barrar a posse de JK. Só a morte, em 1956, interrompeu sua carreira golpista. Os três filhos do general Alcides foram militares: Leo, Cyro e Alcides Carlos. Os dois primeiros, pai e tio de Sérgio Etchegoyen, assumiram o posto e foram protagonistas do golpe de 1964, sendo ambos denunciados no relatório da Comissão Nacional da Verdade.

Leo, o pai, foi secretário de Segurança Pública do Rio Grande do Sul, de novembro de 1964 a fevereiro de 1965, assessor do general-presidente Emílio Garrastazu Médici e chefe do Estado-Maior do II Exército, de agosto de 1979 a julho de 1981 e, a seguir, chefe do Estado-Maior do III Exército, em agosto de 1982. Como secretário de Segurança do Rio Grande do Sul, seus feitos mais notáveis foram 1) instalar no Palácio da Polícia em Porto Alegre a sede do  Departamento de Ordem Política e Social (Dops) no estado. Lá foram presos e torturados mais de mil pessoas, dez delas assassinadas. Entre os torturados estava o deputado federal Rui Falcão (PT-SP), ex-presidente do partido e um de seus principais líderes. 2) recepcionar o agente da CIA Dan Mitrione, que ensinou técnicas de tortura aos militares e policiais brasileiros e das demais ditaduras latino-americanas nos anos 1960.

Cyro, o tio de Sérgio, foi assessor do general Milton Tavares de Souza, o Miltinho, temido chefe do poderoso Centro de Informações do Exército (CIE) da fase mais sanguinária do Governo Médici. Ele foi também o responsável “Casa da Morte”, centro clandestino de tortura e morte montado pelo DOI-CODI do I Exército em Petrópolis (RJ). 

Sérgio seguiu os passos do avô, do pai e do tio. A fúria contra a revelação do papel nefasto de sua família pela Comissão Nacional da Verdade foi um dos combustíveis de seu papel no ciclo golpista 2016-2018.

Atualização: na versão original do artigo, escapou-me a tentativa de golpe de 1961 para impedir a posse de João Goulart. É notável que dos dez golpes perpetrados ou tentados desde 1954, três deles tenham sido para impedir a posse de presidentes eleitos (JK em 1955, João Goulart em 1961 e Lula em 2022). Quem me advertiu sobre a omissão da tentativa de 1961 foi o amigo e historiador brilhante Jones Manoel, pelo que agradeço.