Nações não resultam de processos “naturais”: são comunidades imaginadas e construídas para legitimar o Estado moderno. Quem estudou a história moderna atento aos processos culturais sabe disso.
A construção das nações é trabalho delicadíssimo e perigoso: produz o sentimento coletivo mais potente e mortífero já conhecido. Não há carnificina moderna que não seja conduzida em nome da defesa dessa entidade sacrossanta, também chamada “pátria”.
Grandes assassinos do século XIX agiram em nome de Deus, da pátria e da família. Na atualidade, o avanço do ultraconservadorismo ocorre por meio da agitação enviesada dessas bandeiras. Não há regime político autoritário que dispense o uso de sentimentos nobres amesquinhados por obscurantistas.
Um mero chefe de Estado não tem autoridade moral para pedir a vida de seus cidadãos. Um “pai da pátria” ou um “chefe da nação”, tem. Em nome dessa comunidade sacrossanta, multidões matam e morrem convictas de que ascenderão ao panteão máximo da glória.
Bolsonaro prometeu metralhar reformistas sociais em nome de Deus, da pátria e da família. Aprendeu, no Exército, que “o mais alto valor de uma nação / vibra n´alma do soldado, ruge n´alma do canhão” (Hino da Artilharia, calcado em música do exército alemão, mostrou-me certa vez um amigo atento).
(Lembrete aos que defendem a reforma do ensino militar como forma adequada de “democratizar” o Exército: é o cancioneiro, mais que preleções em sala de aula, que deixa os militares convictos da condição de criadores da nação e responsáveis por seu destino).
A construção desta comunidade, a nação, é permanente. O mais reconhecido teórico da construção da nação no século XIX, Ernest Renan, cunhou uma frase que seria repetida insistentemente: a nação é uma opção cotidiana. Não há tréguas na disputa pela nação que almejamos.
A construção desta comunidade representa uma disputa constante de interesses sociais divergentes. Neste processo, é fundamental “esquecer” determinados fatos e exaltar outros, assinalou Renan, autor usado por fascistas italianos.
Hobsbawm, por sua vez, revelou que a invenção de tradições joga peso fundamental na criação das nacionalidades. Hoje se fala em “disputa de narrativas”, mas a luta política sempre foi orientada por interpretações divergentes acerca de experiências vividas. Aos “de baixo” cumpre rechaçar cartilhas dos que lhes exploram.
Lula determinou silêncio relativamente ao golpe de 1964. O militar brasileiro acredita que, nesta ocasião, salvou a pátria. Não se envergonha do fato de tal “salvação” ter sido viabilizada pela força militar do Pentágono. O presidente dos Estados Unidos deu a ordem para deter o reformismo protagonizado por João Goulart, um governante legalmente estabelecido.
A determinação de Lula é inadmissível. Contraria sua própria história e confronta as forças que garantiram sua eleição. É uma cusparada na cara de Jango. Nega o discurso que legitimou a Constituição de 1988, quando Ulysses crivou que a ditadura merecia ódio e nojo dos brasileiros.
A determinação de Lula ajuda a legitimar a traição aos interesses populares ocorrida em 1964. Joga na lata do lixo o empenho de todos os democratas que se engajaram no combate ao regime assassino. Espezinha os que deram suas vidas pela liberdade e pelas reformas sociais. A lista é longa, desde Tiradentes até Manoel Fiel Filho. Passa por Bárbara de Alencar, Bergson Gurjão e Helenira Resende.
Conscientemente ou não, Lula endossou a percepção histórica do quartel, que se vê a encarnação de nobres propósitos.
Por que Lula tomou tal atitude? A Constituição determina que assuma o comando das corporações. Lula falou como subalterno, não como comandante. Não lhe cabe o posto de porta-voz de fileiras.
Em nome da preservação da democracia não faz sentido endossar os que se empenham em destruí-la. Lula falou como obscurantista e deve desculpas aos brasileiros.