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Oscar 2024: “Pobres Criaturas” e o socialismo como ferramenta de libertação

Filme narra a saga de Bella Baxter, criatura reanimada que sai em busca de liberdade

Cena de “Pobres Criaturas”.Créditos: Divulgação
Escrito en OPINIÃO el

O filme "Pobres Criaturas", dirigido por Yorgos Lanthimos, chega como um dos favoritos ao Oscar 2024, que acontece neste domingo (10), com 11 indicações, entre elas, a de Melhor Filme, Direção e Atriz para Emma Stone, que dá vida à protagonista da trama, a criatura Bella Baxter. A produção tem dividido opiniões, principalmente no que diz respeito à presença de cenas de sexo e, de acordo com algumas críticas, uma suposta romantização da prostituição. Na verdade, o filme vai de encontro a isso e busca desnaturalizar, a partir das teses socialistas, as funções - trabalhistas e morais - impostas pelo modo de produção capitalista.

 


ALERTA: ESTE TEXTO CONTÉM SPOILER!


A jornada de Bella Baxter

A trama de “Pobres Criaturas” tem como ponto de partida o médico professor Goldwin Baxter (Willem Dafoe), responsável por trazer à vida Bella Baxter, que tem o seu corpo resgatado pelo cientista após se jogar de uma ponte. Assim como em "Frankenstein", o cientista a reanima com os mesmos métodos.

Logo de início, ele seleciona o jovem estudante Max McCandles (Ramy Youssef) e o responsabiliza por tomar notas do dia a dia de Bella e como ela evolui na aprendizagem dos "bons modos".

Com o convívio diário, o jovem estudante se apaixona por Bella e eles decidem que vão se casar. Porém, no meio do caminho a criatura conhece o advogado boêmio Duncan Wedder (Mark Ruffalo), que também se apaixona por Bella e a convida para se aventurar e conhecer o mundo.

Bella Baxter até simpatiza com Duncan, mas o que a atrai mesmo é se aventurar e conhecer o mundo e as pessoas. Dessa maneira, ela inicia sua jornada. Aqui é possível estabelecer um primeiro paralelo com a criatura do Dr. Frankenstein que, em sua jornada, sai em busca de amor e aceitação pela sociedade. No entanto, só encontra desprezo e ódio por causa de sua aparência.

No início de sua jornada, Bella Baxter ainda está atrelada a Duncan, que desenvolve uma paixão dominadora e ciumenta pela jovem e tenta controlá-la de todas as maneiras. Na primeira etapa da viagem deles, em Portugal, Bella o deixa para trás e passa então a descobrir a vida e novos sentidos, pois até esse momento apenas os valores patriarcais tinham sido ensinados para ela, até porque Bella ainda não havia convivido com outras mulheres.

Neste ponto da história, Bella então passa a viver a boemia, conhecer pessoas e outros homens, aprende o que é a ressaca, o sexo sem vínculo afetivo. Porém, ela opta por viver todas essas experiências sozinha, sem Duncan. Este, então, resolve sequestrar a "amada" e levá-la forçada a um navio, que tem como destino a França.

Porém, se Duncan tinha por objetivo isolar Bella, o seu plano simplesmente não se concretiza, pois no navio a jovem criatura conhece um casal de amigos que apresenta o ponto de vista do niilismo. É a primeira grande virada na vida de Bella, que já começa a enxergar os homens como Duncan de maneira negativa, pois tais tipos já não coadunam com aquilo que ela passa a entender por "liberdade".

Durante uma parada na Grécia, um homem que Bella conhece no navio lhe mostra adultos e crianças que choram de fome e imploram por comida. A protagonista não aguenta aquela cena, que lhe dói fundo, e resolve que o melhor a fazer é entregar todo o dinheiro para aquelas pessoas miseráveis.

A partir da tragédia social na Grécia, Bella começa a entender que o mundo é desigual, misógino e violento. Mas como transformar a realidade ao seu redor?

A desnaturalização da vida e o socialismo como ferramenta de libertação

Ao desembarcarem na França e completamente falidos, Bella Baxter passa a trabalhar como prostituta e trava uma importante amizade com Toinette (Suzy Bemba), que lhe apresenta as teses socialistas. Ao tomar conhecimento dessa nova ideia de sociedade que se espalha pela Europa e pelo restante do mundo, Bella então passa a entender porque sofreu tanto ao tomar contato com a miséria extrema na Grécia e que aquilo é produzido pela chamada "modernidade".

O contato com o socialismo, que neste momento histórico da trama já tem como base principal "O Manifesto Comunista" de Marx e Engels, publicado em fevereiro de 1848, é paradigmático na vida de Bella Baxter e isso por uma série de motivos, mas o principal deles é entender que nenhuma das relações estabelecidas pela sociedade industrial e capitalista são "naturais", pelo contrário, são modos de vida que foram impostos às sociedades do mundo inteiro e que passaram a organizar a vida a partir do trabalho remunerado. 

Mas há outra questão importante que Bella assimila a partir do socialismo: de que as mulheres não são obrigadas a conviverem com homens e que a heterossexualidade também é uma construção política. Tais questões são de suma importância, pois as teses socialistas desnaturalizam as relações héteras, a miséria humana e a exploração alheia.

Além disso, o filme traz à cena a organização das trabalhadoras sexuais em torno de células socialistas. Tal questão foi tema de longos debates entre Lenin e Clara Zetkin: para o líder da revolução soviética, os debates sobre sexualidades e prostituição desviam o curso e potências transformadoras. Já para a revolucionária alemã, tais debates eram fundamentais para o fim da sociedade capitalista e construção da sociedade comunista. Tais diálogos podem ser conferidos aqui.

Os ecos Bella Baxter e Clara Zetkin

As teses revolucionárias de Clara Zetkin estão representadas nas figuras de Bella Baxter e Toinette, que passam então a levar adiante a luta contra o patriarcado, o falso moralismo vigente na esquerda revolucionária e, principalmente, a libertação sexual e o fim da heterossexualidade e monogamia como "destinos naturais da vida".

O fio do socialismo é o que separa a criatura do Dr. Frankenstein de Bella Baxter: o primeiro sucumbe na busca por amor e aceitação. Talvez, se, assim como Bella, tivesse se deparado com as teses libertárias e anticapitalistas, o seu destino teria sido outro. No entanto, este paralelo nos ajuda a entender o impacto que os textos socialistas tiveram na sociedade, principalmente quando focamos nas revolucionárias.

Os ecos de Bella Baxter, Toinette e Clara Zetkin são completamente audíveis nos movimentos revolucionários de libertação sexual que surgiram ao longo do século XX e que no século XXI encontram o seu ápice na produção teórica e ação política nas ações travestis, transexuais e não binárias e, assim como nos contextos de Baxter, Toinette e Zetkin, são combatidos pela direita e por parte da esquerda, que não ousa dizer em alto e bom som que a heterossexualidade compulsória é um projeto de poder levado a cabo pelo modo de produção capitalista aliado ao fundamentalismo religioso.