CINEMA

A boneca e o Oscar: problemáticas em torno das indicações e esnobadas de Barbie – Por Cesar Castanha

É difícil enquadrar Barbie como o resultado do trabalho criativo de minorias que foi ignorado pelo maior evento de cinema do país

Créditos: Divulgação
Escrito en OPINIÃO el

Na terça-feira, dia 23 de janeiro, foram anunciados os indicados para o Oscar 2024 em todas as categorias da premiação. Ao todo, 53 filmes foram indicados e distribuídos em 23 categorias. O filme Barbie (dir. Greta Gerwig) recebeu 8 indicações, ficando atrás das 13 de Oppenheimer (dir. Christopher Nolan), 11 de Pobres criaturas (dir. Yorgos Lanthimos) e 10 de Assassinos da lua das flores (dir. Martin Scorsese). Duas indicações esperadas e não recebidas por Barbie, no entanto, foram nas categorias de Direção para Gerwig e de Atriz para Margot Robbie. Nas redes, o descontentamento com essas ditas esnobadas começou a se espalhar logo depois do anúncio e recebeu alguns engajamentos notórios, como do ator Ryan Gosling, também estrela do filme e indicado na categoria de Ator Coadjuvante, e de Hilary Clinton.

Tanto Gosling quanto Clinton não se dirigem abertamente ao que eles acreditam ser o motivo das esnobadas. As duas publicações, no entanto, fazem o suficiente para deixar implícito que a discriminação de gênero pode ser o motivo, se não pelo conteúdo do que foi publicado em si, então pelo fato de que a discussão online a que eles estão aderindo sobre o assunto não tem deixado qualquer margem para ambiguidade: de contas com poucos seguidores no X/Twitter até a cobertura jornalística de veículos como The Hollywood Reporter e Indiewire, todos que manifestam frustração com essas ausências fazem a associação delas com o machismo histórico da academia, agora, na perspectiva deles, reiterado.

Não se fala de misoginia no Oscar sem substância. Ainda que Margot Robbie e Greta Gerwig tenham efetivamente recebido indicações por Barbie nas capacidades de produtora e roteirista respectivamente e que Justine Triet tenha sido indicada como diretora pelo filme Anatomia de uma queda (um feito considerável, tendo em vista ser um filme de fora dos Estados Unidos e pela maior parte em um idioma que não o inglês), é conhecido que apenas nove indicações em quase um século da categoria de Direção foram recebidas por mulheres.

É evidente que esse número é resultado de uma diferença de gênero que atravessa toda a indústria de que o Oscar é apenas uma parte (uma parte bastante relevante pelo papel de legitimação que dá à indústria, mas ainda assim apenas uma parte). Ao mesmo tempo, justamente porque a academia é um núcleo muito restrito do sistema em que se insere, ela é mais fácil de controlar, de fazer mudanças para obter novos resultados, como foi feito algumas vezes na última década depois de controvérsias enfrentadas pela predominância quase total de indicados brancos em 2015-2016. A solução que tende a aparecer é uma renovação do corpo de votantes, com uma expansão inclusive internacional dos membros. Como existe uma resposta possível a ser dada pela academia, o que não seria tão simples obter da indústria como um todo (ainda mais no caso do cinema nos Estados Unidos, que é completamente dependente do capital privado), ela tende a ser cobrada diretamente pelas faltas que revela.

O caso deste ano, porém, é bastante diferente. É difícil enquadrar Barbie como o resultado do trabalho criativo de minorias que foi ignorado pelo maior evento de cinema do país. O filme resultou em uma bilheteria de um bilhão de dólares e pode ser considerado o maior fenômeno do cinema em 2023, e isso não apenas por sua bilheteria mas por seu sucesso de se agendar em contextos culturais muito amplos e diversos. Em parte, como o filme da boneca Barbie de quem todo mundo está falando, mas em outra parte como um filme recebido pela crítica como eficiente em sua posição criativa autoral e na reivindicação da pauta feminista. No último caso, não sem controvérsias. Youtubers diversos alegaram que Barbie é um filme que ensina a odiar homens e coisas semelhantes; e muitos críticos apontaram para as limitações de um feminismo liberal articulado por um dos maiores estúdios do planeta e que funciona inevitavelmente como propaganda para uma marca de brinquedos infantis. De qualquer modo, para defender ou não o filme, a relação dele com o discurso feminista tomou um lugar central sempre que ele era pautado.

Dado a repercussão econômica e cultural do filme, argumenta-se então que a ausência de Gerwig na categoria de direção não pode ocorrer por outro motivo que não a misoginia do corpo de votantes. Essa leitura me parece muito pouco rigorosa por dois motivos. Primeiramente, porque ela cria uma situação hipotética de “se Gerwig fosse homem”, “se Barbie fosse dirigido por um homem” ou “se o filme não tivesse narrativas centralizadas em mulheres, pautasse o feminismo e tivesse uma linguagem pouco identificada com a masculinidade” os resultados seriam diferentes. Esse raciocínio só pode ser descrito como uma grande falácia intelectual. Barbie só se tornou um fenômeno global com oito indicações ao Oscar e presença dominante na temporada de premiações como um todo porque é um filme que foi bem-sucedido em se vender como uma obra autoral de uma diretora mulher e um imenso sucesso comercial ao mesmo tempo.

Gerwig sempre ocupou um papel muito relevante na narrativa que Barbie construiu da sua antecipação até toda a sua carreira nos cinemas e serviços de streaming. A diretora começou a trabalhar com cinema nos anos 2000 vinculada ao movimento mumblecore, formado por jovens cineastas experimentais dispostos a usar os meios baratos disponíveis a eles para fazer cinema de ficção independente. Gerwig colaborou com o mumblecore por alguns anos como atriz, roteirista e diretora. Nos anos 2010, ela começa a aparecer como atriz em filmes comerciais de baixo orçamento e continua a trabalhar como roteirista em colaboração com seu atual marido, Noah Baumbach, com quem escreve inclusive Barbie. Em 2017, ela dirige o seu segundo filme, mas o primeiro com um orçamento e equipe em escala padrão para um drama hollywoodiano, Lady Bird, pelo qual recebe sua única indicação na categoria de Direção do Oscar. Em 2019, ela faz a adaptação literária de época Adoráveis mulheres, indicado como Melhor Filme.

O anúncio de Gerwig como diretora de Barbie concluía uma trajetória que começou na margem extrema do cinema independente nos EUA e terminou no centro do mainstream, como realizadora de um pretendido blockbuster. A sua escalação despertou curiosidade generalizada em torno do filme, que se tornou entusiasmo com a divulgação das primeiras imagens e vazamento de filmes de referências. A discussão estava então voltada para Gerwig, uma diretora interessante, criativa e em alguns momentos da sua carreira também independente e experimental, que sempre pautou narrativas de mulheres em seus trabalhos e tinha o potencial de fazer do filme da Barbie um filme autoral. Quando se julgou que isso foi feito, Barbie encontrou um dos caminhos mais fáceis para a temporada de prêmios, com uma narrativa construída há anos, de uma promessa cumprida, de fazer do mais improvável, um filme da Mattel, um grande filme. Se não fosse por Gerwig e se não fosse pela articulação de um objetivo feminista por Gerwig, não existiria Barbie nas premiações – e arrisco dizer num viés mais especulativo que sequer existiria um fenômeno Barbie.

O segundo motivo que me leva a descartar o argumento de que, por ter sido um sucesso comercial, Barbie deveria naturalmente ter entrado, já que é isso que o Oscar também tende a reconhecer, está relacionado às mudanças recentes no corpo de votantes que mencionei em outro momento do texto. É verdade que grandes sucessos comerciais também identificados como autorais tinham uma tradição de serem bem recebidos pela academia – e ainda têm, se considerarmos as oito indicações de Barbie ou as muitas vitórias de Tudo em todo lugar ao mesmo tempo, ou indicações de Top Gun: Maverick e Avatar: o caminho da água, no ano passado.

Ocorre, porém, que o sistema de votação do Oscar é dividido por branches, corpos de votação distintos em que cada membro da academia é membro de algum ou alguns desses branches. Na prática, isso significa que atores votam nas categorias de atuação, diretores na de direção, roteiristas nas de roteiro, etc. Diante da expansão internacional da academia, nenhum branche foi mais afetado que o de direção. O motivo para isso é óbvio, são os diretores de fora dos Estados Unidos que têm a melhor chance de se tornarem notórios internacionalmente. Na lógica autoral, são eles que assinam os filmes vistos. Então, é muito mais fácil um diretor estrangeiro ser convidado a se juntar à academia do que a pessoa que montou ou fez a direção de arte de seu filme.

A internacionalização do branche de direção criou consequências imediatas na composição da categoria. Repetidamente, diretores mais conhecidos fora dos EUA conseguiram a indicação no lugar de realizadores de sucessos comerciais produzidos no país. Esse é o caso de Ryusuke Hamaguchi (diretor de Drive my car), indicado no lugar de Denis Villeneuve (Duna), e de Ruben Östlund (Triângulo das tristezas), indicado no lugar de James Cameron (Avatar) e Joseph Kosinski (Top Gun). Então, enquanto a academia como um todo não está se afastando de sucessos comerciais, é justo considerar que o branche de direção deixou de ter isso como prioridade.

As duas indicações que aparecem “no lugar” de Gerwig este ano são as de Justine Triet e Jonathan Glazer (Zona de interesse). Dois diretores “de fora”, menos por não serem dos EUA e mais por nunca terem gozado das atenções da academia antes. A indicação de Glazer é por si só interessante. O diretor é um veterano que já trabalhou com estrelas do nível de Nicole Kidman (em Reencarnação) e Scarlett Johansson (em Sob a pele) e as colocou em um dos filmes mais estranhos da carreira de cada uma. O inquietante sempre foi a linguagem a partir da qual o diretor operou tanto em seus poucos longas-metragens quanto em seus curtas-metragens. Desta vez, ele apresenta um drama histórico, o que possivelmente pode ter sido recebido como mais palatável para os votantes. A indicação mais recente em Direção que se assemelha a de Glazer seria a de Terrence Malick por Além da linha vermelha (1998), um veterano de poucos filmes, mas todos essenciais para pensar os experimentos estéticos da Nova Hollywood nos anos 1970, período em que foi ignorado pela academia, apenas para ser indicado quando realiza um filme de guerra, um gênero notoriamente ao gosto dos votantes.

Esse é o contexto maior da não indicação de Gerwig como diretora por Barbie. Diante dele, acho difícil argumentar que ela foi pessoalmente preterida da indicação pelo branche de diretores. Ainda assim, é possível tomar algumas medidas para assegurar maior igualdade a mulheres na categoria de Direção. A primeira delas seria ampliar radicalmente o número de mulheres no branche, que atualmente é 75% (dado do início de 2023) composto por homens, o que não fica nem mesmo entre os três mais desiguais dos branches da academia, sendo esses os de Som (86% homens), Fotografia (90% homens) e Efeitos Visuais (90% homens). Essa medida, mesmo imprescindível, pode ser mais lenta do que a demanda por mudanças que a academia enfrenta.

Enfim, chegando a cerimônia no dia 10 de março, Barbie estará presente concorrendo em sete categorias. O filme desponta como o franco favorito em três delas: Canção, Figurino e Direção de Arte. A depender da repercussão das esnobadas, Gerwig também pode vencer sobre Oppenheimer na categoria de Roteiro Adaptado, a mesma que ela deveria ter vencido há 4 anos por sua adaptação inventiva de um clássico da literatura estadunidense. Não é uma posição ruim para se estar no fim da corrida. E a filmografia de Gerwig é, ainda, uma das carreiras de quatro filmes mais celebradas numa perspectiva histórica, o que deve abrir o seu caminho para futuros projetos, o mais imediato deles sendo uma nova adaptação de As crônicas de Nárnia que ela realiza em parceria com a Netflix. É uma notícia feliz que uma diretora preocupada com fazer filmes originais, formalmente inventivos e centralizando narrativas de mulheres esteja tão interessada em trabalhar com o cinema massivo a longo prazo, e é também feliz que a academia seja, em maior parte, entusiasta de suas escolhas.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.