No artigo anterior [1], procurei argumentar que a política macroeconômica deve ser consistente com as demais políticas de desenvolvimento e que essas, por sua vez, devem ser consistentes com seus objetivos, conforme expressos na nossa Constituição, nos seus direitos e garantias fundamentais. Defendi que devemos buscar ter gastos como percentual do PIB nas diversas áreas do setor público mais parecidos com a média internacional e apresentei alguns dados de comparação de um estudo recente da secretaria do tesouro. Concluí aquele artigo ressaltando que devemos buscar também uma convergência com o PIB per capita dos países desenvolvidos e argumentei que isso não será possível apenas através da agropecuária, da mineração ou dos serviços tradicionais, pois, por um lado, a agropecuária e a mineração já possuem alta produtividade, mas não possuem muito espaço para aumentar seu percentual no PIB sem graves consequências negativas para o meio ambiente. E, por outro lado, o setor de serviços tradicionais (cabeleireiros, treinamento esportivo etc.) não possui muito espaço para aumentar sua produtividade.
Portanto os únicos setores onde pode haver aumento de produtividade combinado com aumento do percentual do PIB é a manufatura e os serviços modernos (design, software etc.), fortemente vinculados ao setor industrial. E esses dois setores dependem crucialmente do câmbio, a variável macroeconômica mais negligenciada nas políticas de desenvolvimento brasileiro e que receberá a devida atenção no presente artigo.
Taxa de juros
Antes de abordar o câmbio, é fundamental lembrar que temos que reduzir em média nossa taxa básica de juros real, que ainda é das maiores do mundo. Além do nosso gasto em percentual do PIB com os juros da dívida pública ser 4 vezes maior do que a média internacional (como mostrei em [1]), diversos investimentos em infraestrutura, maquinaria e principalmente em pesquisa e desenvolvimento só são viáveis se em média nossa taxa básica de juros real for reduzida.
Portanto, a principal justificativa para a busca do superavit primário não é o controle do crescimento da dívida como percentual do PIB, como as vezes é mencionado até mesmo pelo próprio Haddad, mas sim reduzir em média nossa taxa básica de juros real para próximo do padrão internacional, mantendo a inflação estável, o pobre no orçamento e colocando finalmente os mais ricos no imposto de renda de forma adequada.
Desindustrialização e câmbio
O percentual da manufatura no PIB brasileiro teve duas quedas bruscas [2]. A primeira de 29% em 1989 para 23% em 1990 e a segunda de 24% em 1994 para 15% em 1995. É importante observar que a manufatura e os serviços modernos são exatamente os setores em que cujos bens e serviços podem ser importados e exportados. Por isso, esses são os setores mais sensíveis à taxa de câmbio e às tarifas comerciais. A primeira queda brusca se deveu à redução abrupta das tarifas comerciais no início do governo Collor, enquanto a segunda queda brusca se deveu à valorização abrupta do real frente ao dólar no início do governo FHC, com a chamada âncora cambial, mantida durante todo seu primeiro mandato. Com o fim da âncora cambial, no início do segundo mandato de FHC, o câmbio passou a flutuar, porém com longos períodos de real valorizado frente ao dólar e alguns curtos períodos de forte desvalorização do real.
Esse comportamento do câmbio pode ser explicado primeiro pela excessiva competitividade da nossa agropecuária e mineração, influenciada fortemente pelas intensas variações dos preços das commodities, frente ao setor industrial (conhecida como doença holandesa, devido aos impactos na sua manufatura da descoberta naquele país de gás natural em 1959). E, em segundo lugar, pelo patamar elevado da nossa taxa básica de juros real em relação à média mundial, que atrai capitais especulativos que geram necessariamente desvalorizações abruptas após longos períodos de valorização paulatina do real em relação ao dólar. Essa dinâmica cambial promoveu mais uma queda, agora paulatina, do percentual do PIB da manufatura no Brasil [2] que, em 2022, chegou a 11%, enquanto na média mundial [3] estava em 16%.
Reindustrialização e câmbio
O governo vem buscando e já obteve algumas medidas importantes para permitir e estimular nossa reindustrialização. Buscar o superavit primário para reduzir expressivamente nossa taxa básica de juros real é super acertado, especialmente se for colocando os mais ricos no imposto de renda e moderando o crescimento dos gastos de certas áreas do setor público, como o judiciário. Além disso, a reforma tributária do consumo recentemente aprovada trará ganhos de eficiência econômica fundamentais no médio e longo prazos, reduzindo o chamado custo Brasil, especialmente para a manufatura. E a volta de uma política industrial com participação ativa do poder público, através de instrumentos financeiros próprios, melhoria do ambiente de negócios e a utilização do poder de compra estatal, é fundamental para qualquer estratégia de desenvolvimento industrial.
Tudo isso é essencial e vai na direção correta, mas é suficiente para obter nossa reindustrialização? Infelizmente, a resposta para essa pergunta é negativa! Essas medidas por si só talvez nem sejam capazes de interromper nossa desindustrialização, mas quase certamente serão incapazes de elevar o percentual da nossa manufatura no PIB para o percentual médio mundial, quanto mais superá-lo.
Para isso é necessário adotarmos uma política cambial viável e consistente com a retomada industrial. Até mesmo figuras proeminentes do mainstream reconhecem que a única estratégia de desenvolvimento que historicamente deu resultados, da Europa no pós 1945, à China no pós 1978, passando pelo Japão e pela Coreia do Sul, foi a manutenção de um câmbio que garantisse a competitividade da indústria nacional [4]. A explicação para isso é que o setor industrial demanda investimentos constantes para se manter competitivo, o que só é possível ser mantido num país se a moeda local não se valorizar em demasia por longos períodos e frequentemente, comprometendo a competitividade dos produtos manufatureiros.
Que fazer?
É frequente no debate brasileiro o reconhecimento de que o câmbio mata, mas ao mesmo tempo a resignação de que nada poderia ser feito para proteger a indústria brasileira de seus potenciais efeitos devastadores. Apesar de não ser possível evitar indefinidamente que a moeda local se desvalorize, pois o país precisaria diminuir indefinidamente suas reservas internacionais, é sempre possível evitar que a moeda local se valorize, pois o país sempre pode aumentar indefinidamente suas reservas internacionais [5]. O custo dessa medida é a diferença entre as taxas básicas de juros real local e internacional. Esse é mais um motivo da importância de aproximar a taxa básica de juros real local dos patamares internacionais. Além disso, acima de um determinado patamar, as reservas podem ser aplicadas em investimentos mais rentáveis, num fundo soberano nacional.
Uma política cambial viável seria então estabelecer um piso para o valor do dólar em reais, sem se preocupar com um teto para este valor. O valor desse piso seria dado por um percentual (por exemplo, 95%) da média móvel (por exemplo, dos últimos 10 anos) do valor do dólar em reais corrigido pela diferença entre a inflação do Brasil e a dos EUA no período. Isso manteria o câmbio flutuante, mas daria uma proteção previsível para a manufatura brasileira frente a concorrência internacional, o que é essencial para os investimentos industriais de longo prazo, tanto em infraestrutura e maquinaria, mas principalmente em pesquisa e desenvolvimento. Esse percentual da média móvel pode ser ajustado lentamente para baixo ou para cima, de modo a obtermos uma balança manufatureira relativamente equilibrada. Essa é a única maneira de se proteger a cadeia de fornecedores sem prejudicar a competitividade do produto final, solucionando um nó importante da política industrial [6], e sem abrir mão da competitividade dos produtos consumidos no país.
Sem essa proteção cambial, corremos o risco de mais aprofundamento na nossa desindustrialização, dada a intensa competição internacional, com a sobre capacidade manufatureira de vários países, especialmente da China, mantidas à base de intensos subsídios [7]. Os EUA já começaram a tomar medidas decisivas para proteger sua manufatura [8] e a Europa deve seguir caminho parecido, já que sua principal economia, a Alemanha, sofre com a invasão dos produtos chineses [9]. O Brasil vai finalmente abandonar seu complexo de vira-latas e proteger sua produção [10]?
*Mauro Patrão é doutor em Economia e em Matemática e professor Associado da UnB.
[1] Patrão, M.: Haddad, as árvores e a floresta:
https://revistaforum.com.br/opiniao/2024/2/19/haddad-as-arvores-floresta-por-mauro-patro-154251.html
[2] Manufacturing, value added (% of GDP) - Brazil:
https://data.worldbank.org/indicator/NV.IND.MANF.ZS?locations=BR
[3] Manufacturing, value added (% of GDP) - World:
https://data.worldbank.org/indicator/NV.IND.MANF.ZS
[4] Michael Dooley on the International Monetary System and Future of Global Dollar Dominance:
https://www.mercatus.org/macro-musings/michael-dooley-international-monetary-system-and-future-global-dollar-dominance
[5] Setser, B.: The source of the asymmetry?:
https://x.com/Brad_Setser/status/1755009308880711995?s=20
[6] Nassif, L.: O grande nó das políticas de proteção à indústria:
https://jornalggn.com.br/coluna-economica/o-grande-no-das-politicas-de-protecao-a-industria-por-luis-nassif/
[7] China to export deflation to the world as economy stumbles:
https://www.ft.com/content/3b45b700-e7ca-4a8a-9946-21e289d9fefe
[8] Rodrik, D.: America’s Emulation of China Calls for New Rules:
https://www.project-syndicate.org/commentary/us-china-economic-policy-similarities-need-not-be-source-of-conflict-by-dani-rodrik-2024-02
[9] Germany’s Days as an Industrial Superpower Are Coming to an End:
https://www.bloomberg.com/news/features/2024-02-10/why-germany-s-days-as-an-industrial-superpower-are-coming-to-an-end
[10] Nassif, L.: A grande batalha contra a viralatice e pela produção:
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.