MOUZAR BENEDITO

Nós, amaldiçoados do século XXI

"Relembro José Cândido Carvalho, que se horrorizava com tranqueiras que hoje parecem coisa à toa. Ah, se estivesse vivo! O que você achava um horror, hoje é fichinha, prezado escritor"

Mouzar Benedito.
Escrito en OPINIÃO el

O mundo está com algumas coisas estranhas, e o Brasil reflete isso, deixando uns velhos do século passado saudosistas. Nem vou falar de política, do ressurgimento forte de ideias de extrema direita, de inspiração nazifascista. Tô pensando em coisas de costumes e gostos. 

Mas antes de entrar nesse assunto, lembro de José Cândido de Carvalho, grande escritor fluminense, cujo livro mais famoso é O Coronel e o Lobisomem, belíssimo. O seu Um ninho de mafagafes cheio de mafagafinhos, de contos, publicado em 1972, foi outro livro famoso. Seus últimos livros foram Se eu morrer, telefone para o céu (1979) e Os mágicos municipais (1984)

Porque Lulu Bergantim não atravessou o Rubicão, foi publicado em 1970, portanto numa época em que não havia internet e os computadores eram grandes trambolhos que não tinham nem um centésimo das funções que têm hoje. Mas ele já se incomodava muito com certas mudanças havidas no mundo, incluindo essa máquina que hoje manda nas pessoas, nas relações pessoais, comerciais e tudo mais. Destrói amores, espalha ódios e afasta as pessoas – a culpa não é dela, é de quem a usa, ela só deu “voz” a quem antes ficava na sua.

Neste livro tem um texto autoapresentativo (olha eu imitando...) intitulado JCC. História pessoal. Reproduzo a seguir o último parágrafo desse texto, porque acho que ele foi um tanto profético. Vejam: 

 “Publiquei o primeiro livro em 1939 e o segundo precisamente 25 anos depois. Entre Olha para o céu, Frederico! e O coronel e o lobisomem o mundo mudou de roupa e de penteado. Apareceu o imposto de renda, apareceu Adolph Hitler e o enfarte apareceu. Veio a bomba atômica, veio o transplante. E a Lua deixou de ser dos namorados. Sobrevivi a todas essas catástrofes. E agora, não tendo mais o que inventar, inventaram a tal de poluição, que é doença própria de máquinas e parafusos. Que mata os verdes da terra e o azul do céu. Esse tempo não foi feito para mim. Um dia não vai haver mais azul, não vai haver mais pássaros e rosas. Vão trocar o sabiá pelo computador. Estou certo que esse monstro, feito de mil astúcias e mil ferrinhos, não leva em consideração o canto do galo nem o brotar das madrugadas. Um mundo assim, primo, não está mais por conta de Deus. Já está agindo por conta própria.

Niterói setembro de 1970”

Agora vamos lá, Brasil 2024 (mas começou antes). 

* Ter cachorro e gostar deles virou obrigação. Nada contra alguém ter cachorro ou outro animal de estimação, embora ache meio estranho o que as pessoas que gostam de um animal fazem com eles. Como quem “gosta de passarinho” e mantém algum preso em gaiola. Isso justificaria, por exemplo, manter em cativeiro alguma pessoa de quem se gosta. No caso dos gatos e cachorros, inclui castração. Você castraria alguém que gosta? E muitos cachorros só saem de casa com coleira. Estranho gostar de animais assim. Até umas décadas atrás, cachorro nem era permitido em prédios de apartamentos, agora seria uma “anormalidade” impedir isso. Os tutores deles (não são mais “donos”) certamente entrariam na Justiça – e ganhariam.

* Música sertaneja, chamada de sertanojo por alguns, que pioraram dando um adendo chique para elas: sertanejo universitário. Dói nos meus ouvidos. E pra piorar, é o que mais toca no Brasil de hoje. Deixa pra trás ritmos que também não me atraem como pagode (ah, que saudade dos sambas de verdade) e o axé. E quem não gosta desse sertanejo está amaldiçoado hoje em dia, toca até nos carnavais e festas juninas do Nordeste!!! 

* Por falar em carnaval, blocos de rua, que eu gostava muito. Mas bloco com centenas de milhares de pessoas, com músicos famosos puxando, e cobrando fortunas... Em São Paulo, mais de cem blocos deixaram de desfilar, protestando contra a falta de patrocínio. Ora! Patrocínio pra bloco de rua, uma festa que deveria ser anarquista e contestadora? Não tá pra mim. Ajudei a criar o carnaval de São Luiz do Paraitinga, no início dos anos 1980, e saíamos em pequenos blocos cantando no gogó, com instrumentos musicais, mas não eletrônicos, nem barulhentos. Lá, continuam fiéis às marchinhas, mas com som de não sei quantos decibéis... Parei de ir antes disso. 

* Ler livros e jornais impressos. Ainda restam uns sobreviventes, mas vão rareando. Um amigo que tem uma ótima biblioteca andou procurando algum jovem a doar, porque os filhos não querem a herança. Os jornais impressos ainda existem, mas seus leitores são considerados de segunda. Sai neles, na Folha de S. Paulo, por exemplo, o que os leitores eletrônicos recebem no dia anterior. E muito do que sai na versão eletrônica não sai na impressa.

* Carrões... Isso é antigo, vem do século passado. Muitos cantores e jogadores de futebol sempre tiveram fascinação por isso. Primeira grana alta que entra, vai pra um carro de um milhão de reais ou não sei quanto. Pra mim, uma grande bobagem. E por falar em carrões, as corridas de automóvel, outra coisa antiga, não vejo a menor graça. Que gosto esquisito, acho, ficar num autódromo, debaixo de sol ou chuva, vendo carros barulhentos, durante horas. Ah... falando em carros barulhentos, lembro-me de alguns jovens em Santa Catarina que morreram dentro de um carro, por gás carbônico saído pelo ar condicionado. A gente que considero “normal” não gosta de barulho de carro, mas os fanáticos por carro, ao contrário, gostam é de barulho, e trocam o escapamento silencioso por um bem barulhento, para chamar a atenção. E numa dessas, o serviço malfeito manda gás carbônico pelo ar condicionado pra dentro do carro...

* Influenciadores digitais, ou “influencers”, palavra mais ao gosto desse pessoal. De vez em quando vi alguns, mais algumas do que alguns, em programas de TV, e fiquei ouvindo só pra saber o que tinham a dizer. Cultura zero! Informação, zero também! Influenciam em quê? E pelas notícias, parece que há milhares de “influencers” no Brasil. Uns dizem que têm 5 milhões de seguidores, outros 2 milhões e alguns muito mais. E os mais modestos ficam na casa dos centenas de milhares de seguidores. Ora, se o Brasil tem 203 milhões de habitantes, dos quais a metade não deve seguir esse pessoal, somando o número dos seguidores, com base no que dizem os seus influenciadores, deve estar na casa dos dez bilhões ou mais. Ou seja, 50 vezes mais do que a população do país. Se contar que metade da população não embarca nessa, dá 100 vezes! Então, se for isso mesmo, milhões de brasileiros ficam o dia inteiro seguindo “influencers” falando abobrinhas, indicando o que consumir, moldando comportamentos... Ninguém trabalha?

* E o futebol?! Já gostei muito. Torcendo pelo Corinthians, ia ao Pacaembu com amigos são-paulinos, santistas... e gozávamos ou éramos gozados dependendo de quem jogava melhor. Sem brigas. Depois começaram a separar áreas do estádio para cada torcida, por causa das brigas. E nem isso bastou: agora só pode ir uma torcida por jogo. Mesmo assim, torcidas organizadas marcam, por aplicativos de celulares, brigas mortais com torcidas adversárias. Depredam até o metrô quando perdem... Ah, e o preço dos ingressos? Era acessível a todo mundo. Agora, para entrar numa arena (não é mais campo ou estádio), só sendo rico ou deixando lá metade do salário. Levar filhos? Aí sim, só rico. E pra ver um futebol ruim. Times que já encantaram o mundo, hoje são caricaturas, vibram quando vencem um timeco venezuelano. Os jogadores, ganhando muito pra jogar mal, parecem mais preocupados com o novo corte e nova cor do cabelo... E em vez de Pelé, Didi, Garrincha, Pepe, Zico, Cabeção, Luizinho... exibem nomes compostos pra lá de estranhos, cheios de Ws, Ks e Ys. Yuri Kleberson, Waldiyclayton Robertson, Kalypsoln Albertson...

* Tudo pelo computador ou celular! Por exemplo: precisa de um serviço bancário. Antes, bastava ligar para a agência ou ir lá. Agora as agências nem têm mais telefone, e se a gente vai lá não adianta. Tem que entrar no site do dito-cujo ou num aplicativo de celular. E tome raiva! Tudo assim: pra começar, você tem que ter uma senha. Se você quer um serviço, tecle o dígito um, se quer não sei quê, tecle o dígito dois... Quase nunca tem o que a gente quer. E daí? Não adianta querer resolver. Fale com o ouvidor! Falar como? Entre no site ou no aplicativo e, depois de colocar a senha que exige, digite o que você quer (falar com ele? Rá-rá-rá...). E responde que dali a uma semana te darão uma resposta, para um problema que você tem que resolver imediatamente. 

Em São Paulo, foi criado há umas décadas, um serviço do governo estadual chamado Poupatempo, muito bom. Tirar ou renovar documentos como carteiras de identidade ou de motorista, etc. Bastava ligar pra marcar um horário, ou ir lá sem marcar e esperar numa fila que não durava muito. Agora, só atendem com agendamento por site ou aplicativo, mas pedem uma senha que a gente não tem. Crie uma. Impossível, para leigos. Isso tudo que veio “para facilitar” só complicou e complica. Tenho que contratar um profissional pra agendar um serviço que antes era simples. Passo raiva e às vezes desisto. Uma merda.  

Bom... Teria outras coisas para acrescentar, mas basta, né? Tá duro ser um sobrevivente septuagenário que gosta de músicas de Noel Rosa, Chico Buarque, Tom Jobim, Vinícius, a turma toda da Tropicália, Lupicínio, Cartola, Milton Nascimento, Pixinguinha, Luiz Gonzaga, Vandré, Chiquinha Gonzaga, Tim Maia, Tonico e Tinoco etc. etc. e muitos etc... Resolver problemas pessoalmente ou falando por telefone, brincar um carnaval gostoso (sem me preocupar com ladrões de celulares e cartões) e fazer um monte de coisas simples que não dependem (ou não dependiam) de conhecimento profundo de informática. 

Relembro mais uma vez José Cândido Carvalho, que se horrorizava com tranqueiras que hoje parecem coisa à toa. Ah, se estivesse vivo! O que você achava um horror, hoje é fichinha, prezado escritor. 

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum