CRÔNICA

Disfarce – Por Luis Cosme Pinto

Celso descobre uma carona diferente, que queima calorias em vez de combustível

Escrito en OPINIÃO el

Perdiz bota ovo que nem galinha, cisca que nem galinha, mas não é galinha.

Pinheiro é árvore que não dá fruto nem flor. Também é nome de rio e sobrenome de gente.

Aqui em São Paulo, Perdizes e Pinheiros têm P maiúsculo. São dois bairros próximos e importantes. E é entre eles, a escalar ladeiras e alisar a sola do tênis, que acontece a nossa história.

Sandro mora em Perdizes, Celso vive em Pinheiros. Os dois se olharam na faculdade e se tronaram amigos. Dividiram apartamento, aflições, alegrias e até o PFF, o Prato Feito Fundo da pensão da Lena.

O único compartilhamento que não deu certo foi com a esfuziante Thaís. A moça  começou o namoro com um antes de terminar com o outro. Astuta, respondeu com charme ao perdedor enciumado. “Você fica muito mais bonito quando sorri, acaba com esse bico.” Até hoje os dois amigos evitam o assunto.

Sandro e Celso marcaram o último encontro em Perdizes. Era o dia do rodízio do carro do Celso e Sandro trouxe a solução.  “Vou até aí e te dou uma carona.” Celso pensou:  “Por que vir de lá pra cá e depois voltar? Por que não se encontrar aqui mesmo no meu bairro? ”

Pensou e calou para não contrariar o amigo.

Na hora marcada, Sandro chamou Celso. Os dois caminharam juntos, 30, 50, 100 metros e nada do carro do Sandro. Celso desconfiou de traquinagem, mas alimentou a caminhada a tagarelar da aposentadoria, da final da Libertadores, do botox nas bochechas do prefeito.

Como provoca a Sofia, mulher do Sandro, “esses dois têm solução pra tudo, ainda vão consertar o Brasil.”

Foi aí que Celso, ofegante depois da terceira ladeira, quis saber afinal onde estava o carro de Sandro, que respondeu com sorriso maroto:

- Na garagem de casa.

- E a carona?

- Ué, eu não disse que a carona era de carro. A carona é a pé.

Celso riu da própria ingenuidade e, conformado, pagou a água de coco na avenida Sumaré.

Mudaram de rua e aí foi Celso quem sugeriu o chiste, aprendido com a sobrinha Bruna, de 14 anos. Que tal descobrir o que está por trás do disfarce dessa gente? Basta cutucar a imaginação. Sandro levantou a sobrancelha, só a direita, como faz nos momentos de dificuldade.

- Você vai se divertir, Sandro. Tá vendo aquele caminhoneiro que desceu para descarregar as caixas de refrigerante e agora faz alongamento?

- Sei...

- Ele está disfarçado de caminhoneiro. Isso tudo que a gente vê é teatro. Teatro da vida, entendeu?

- Tá tudo bem com você?

- Vamos imaginar, o tal caminhoneiro é casado e pai de dois filhos. A mãe das crianças é uma linda mulher, uma professora de Geografia de escola pública. Dois alagoanos que se acharam em São Paulo.

- Saquei a brincadeira. Ele de Delmiro Gouveia e ela de Japaratinga. Somando as duas viagens são 5 mil quilômetros para se encontrar.

- Sabia que você ia gostar, Sandro. Os outros motoristas reclamam porque não sabem que por trás de um caminhão tem uma família.

- Por isso, ele acelera tanto na marginal. Não que seja um estressado ao volante. É pai saudoso, marido caloroso, amuado porque a mulher dará aula até a noite. Aquela buzinada não é raiva do carro da frente, é só um gesto de amor.

- Não exagera...

Sandro toma gosto.

- Celso, tá vendo aquela moça?

- Aquela disfarçada de ambulante, que vende meias?

- Isso. É craque de bola. Deu azar e não passou na peneira do meu Corinthians, mas vale insistir. Chuta bem com a canhota. Lembra o Rivelino.

A carona de três quilômetros já acabou. As calorias queimadas espantam a culpa do café da manhã, com fartura de rabanada e mortadela.

Sandro oferece a carona de volta, agora por outras esquinas, com mais sombra e infinitos disfarces.

A dupla só não sabe é que foi seguida de perto.

Laura, não desgrudou de seus calcanhares. Disfarçada de dona de casa distraída, ela é espiã da conversa alheia. Ouve tudo, não esquece nada e depois presenteia um aventureiro qualquer da escrita.

*Luis Cosme Pinto é autor de Birinaites, Catiripapos e Borogodó, da Kotter. O livro ficou entre os 10 semifinalistas do prêmio Jabuti 2024.

**Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.

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