O que o cinema do iraniano Jafar Panahi tem de mais bonito é a sua capacidade única de articular uma crítica da crise política e religiosa do Irã enquanto também elabora um olhar generoso e solidário para aqueles com quem ele compartilha desse país: iranianos que se engajam ou não com tradições locais e projetos de futuro dentro do país. Isso foi um ponto determinante da força de Táxi Teerã (2015) – que funciona ao mesmo tempo como carta de amor a Teerã e manifesto de um exilado – e, agora, de Sem ursos (2022), uma narrativa sobre cinco exilados e sobre a impossibilidade de seu exílio.
Na sua maneira de encenar essas crises locais, Jafar Panahi busca a coexistência como princípio político e estético enquanto lança ao mesmo tempo uma olhar para fora, para a possibilidade de escapar desse sistema político e fugir do país. O desejo pela coexistência está dado na sua filmografia, é o que mobiliza em grande parte o seu cinema: a ideia de que a população do Irã é diversa e conduz dinâmicas possíveis e afetivas de coexistência. Neste texto, no entanto, quero pensar especificamente no caso do seu filme mais recente, Sem ursos, e na frustração, presente no filme, dos projetos de exílio de seus personagens. O meu objetivo é pensar a maneira como esse exílio frustrado responde ao desejo de coexistência e de que maneira Panahi elabora a violência política que atravessa a tentativa do exílio.
Sem ursos tem uma estrutura dividida em duas narrativas. Na narrativa “de fora”, Jafar Panahi interpreta a si mesmo como um diretor realizando um filme à distância. Panahi está hospedado em uma cidade próxima à fronteira do Irã com a Turquia. Ele aparenta trabalhar em seus filmes enquanto está na cidade e faz registros da população local. Em um desses registros, ele captura a imagem de um jovem casal que não deveria estar junto porque a moça, Gozal, estaria prometida a outro homem desde seu nascimento. Um conflito se inicia quando Panahi apaga esse registro e nega ter fotografado o casal, enquanto a população local insiste no envolvimento de Panahi em seu drama social, demandando que ele testemunhe ter visto e fotografado o casal.
A outra narrativa, a “de dentro”, é a do filme realizado à distância. Esse é um docudrama sobre outro casal, um homem e uma mulher mais velhos que os jovens da vila, que aguardam seus passaportes falsos para poder fugir do Irã. O homem e a mulher são antigos presos políticos do governo iraniano, sobreviventes da prisão e da tortura. Logo no início do filme, sabemos que a mulher, Zara, conseguiu o seu passaporte, mas seu marido, Bakhtiar, ainda espera o dele. Zara hesita em partir sem o marido para a Europa. Panahi acompanha esses seus personagens de maneira intermitente, dependendo do alcance da internet na vila em que está hospedado.
Essa narrativa interna ficcionaliza uma história que dentro do filme é dada como real. Zara e Bakhtiar, ou os atores que os interpretam, são de fato um casal esperando uma oportunidade para fugirem juntos do Irã. Um passaporte falso foi realmente adquirido para Zara, mas a partir daí a fronteira entre a ficção e a realidade da narrativa interna para os seus personagens é instável, como o filme vai revelando aos poucos e em um momento específico quando a atriz que interpreta/é Zara se dirige à câmera, o que nesse caso implica ao mesmo tempo um gesto de falar com Panahi (personagem e diretor) e com o espectador de Sem ursos.
No depoimento de Zara, que antecede o desfecho trágico das duas narrativas, a personagem revela a farsa da ficção interna que estava sendo posta pelo docudrama. Em uma tentativa de ao mesmo tempo dar um final feliz para a história do casal e convencer Zara de partir para a Europa, o filme no filme de Panahi apresenta uma solução Deus ex machina e oferece o que faltava para a realização dessa fuga. Zara desmonta, assim, a ilusão que foi posta tanto para ela quanto para o espectador de Sem ursos. E essa ilusão é justamente a da possibilidade do exílio. O seu monólogo tem uma conclusão evidente: o exílio é impossível, não oferece verdadeira fuga ou saída, ele é para a personagem apenas uma prisão estendida, uma perpetuação do sofrimento político que foi imposto sobre ela.
Enquanto isso, a narrativa externa, que parecia ter contornos mais leves, com Panahi encenando um tipo de comédia de erros com a população da vila em torno da foto do casal, prepara terreno para seu próprio desfecho trágico. Novamente, Panahi produz o engano simultaneamente para seu personagem e para o espectador, provocando uma disposição irônica e cômica nas suas interações com a vila, evidenciando o absurdo da sua reivindicação (da noiva prometida ao nascer e da obsessão com a foto como prova de um amor proibido), o verdadeiro risco é apenas sugerido através das cenas, implicado em um aviso reiterado sobre os perigos da fronteira, o que Panahi ignora pela maior parte do tempo. É o desfecho que rasga a ilusão para ele e para o espectador e que nos coloca diante da verdadeira dimensão de violência da fronteira, o que age sobre a cena e interrompe de vez a comédia sutil com que Panahi acreditava estar envolvido, ignorando, como nós mesmos, a tragédia em que foi implicado.
É interessante observar que Sem ursos é contemporâneo de outro filme iraniano também centrado na experiência do exílio, o Pegando a estrada (2021), longa-metragem de estreia do filho de Jafar Panahi, o também diretor Panah Panahi. Nesse outro filme, uma família viaja até a fronteira com seu filho, um cineasta jovem que está saindo do país clandestinamente. Diferentemente de Sem ursos, Pegando a estrada não nos dá nenhuma informação do que motivou o exílio, apenas nos entrega esse processo familiar de despedida. O desejo de coexistência, nesse caso, vai pouco além da coexistência familiar que é rompida pelo exílio, no que esse microcosmo do país toma a estrutura do filme por completo, e poucos outros personagens sequer recebem falas.
Em Sem ursos, no entanto, o exílio é articulado sempre diante da coexistência, apresentada desde os aspectos mais cômicos da narrativa externa até os laços de comunidade que vemos que estão formados em torno do casal na narrativa interna. As culturas iranianas, apresentadas como plurais até pela estrutura da narrativa, geram ricas dinâmicas de cuidado, de identidade e de oratória que atravessam política e legislação local, a maneira como essas pessoas se compreendem e compreendem a sua responsabilidade com o outro. Tudo isso está presente em Sem ursos junto à necessidade do exílio. O que representa, no entanto, o exílio dentro dessas dinâmicas de comunidade? Não acredito que Jafar Panahi se dispõe a tratar dessa pergunta como se pudesse oferecer uma resposta simples. O que observo (e isso está presente em certa medida também em Pegando a estrada) é que o exilado abre mão de algumas dessas dinâmicas de cuidado e identidade ao optar pelo exílio.
Na narrativa externa, por exemplo, a comunidade pode tomar para si a responsabilidade pela vida dos seus a um nível até indesejado pelos seus indivíduos (como é o caso de Gozal, prometida para casamento ao nascer, que tem um problema afetivo pessoal transformado em um problema da comunidade), mas ela não consegue reivindicar a responsabilidade por esses indivíduos quanto mais eles se aproximam da fronteira. Na fronteira, eles estão, portanto, mais independentes (da comunidade e do seu controle cerceador e violento) e mais vulneráveis (à violência). Na narrativa externa é a perda da identidade que entra em jogo quando Zara se recusa a continuar no papel do filme, ela decide permanecer no Irã como Zara (uma Zara que não é a personagem do docudrama). E, assim, ela também permanece vulnerável à violência política e à melancolia de ser uma sobrevivente dessa violência.
Desse modo, Panahi articula o exílio como um fenômeno aberto e invariavelmente tomado pela desumanização da despossessão, um fenômeno que é responsivo à violência de Estado e que é incapaz de cessar essa violência não apenas em um plano geral (cessar para todos que compartilham dessa coexistência), mas em um plano individual, em que o exilado permanece vítima dessa violência, alienado dos cuidados de sua comunidade, separado de sua identidade. A excelência de Sem ursos está na sua tentativa de alcançar a experiência do exílio cortando a sua construção de cena com essa experiência, criando dinâmicas de ficção e realidade tão diversas quanto a permitir uma melhor compreensão dessa como uma experiência compartilhada pela multiplicidade de dissidentes do país – e não só seus dissidentes na política, mas também seus dissidentes no amor – e fazer isso sem negar o país e a potência de suas dinâmicas de coexistência. A beleza do filme está também nesse desejo de permanecer: permanecer no Irã em comunidade e ser feliz em seu próprio país.
Sem ursos está disponível na Globoplay dentro do catálogo da Telecine.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.