Era madrugada de domingo para segunda, pouco depois da meia-noite, quando Thiago Flausino, de 13 anos, foi cruelmente assassinado por aqueles que deveriam estar ali justamente para protegê-lo: a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Sem confronto, sem desculpas (por mais que tivessem criado versões que logo “desapareceram”), sem pena. Simplesmente mais uma vez um corpo preto é um corpo-alvo. E como alvo, foi atingido. Missão cumprida!
Desde segunda-feira que um texto bíblico não me sai da mente. Na narrativa do nascimento de Jesus, o Rei Herodes, furioso porque sabe que da periferia é que nasceria a resistência e um “novo reinado” decide, furioso, matar todas as crianças “da favela”. O evangelista Mateus, ao contar a história, faz referência a um texto do profeta Jeremias: "Ouviu-se uma voz em Ramá, choro e grande lamentação; é Raquel que chora por seus filhos e recusa ser consolada, porque já não existem". (Mateus 2:18)
“Raquel” (e hoje ela se chama Priscila, mãe de Thiago) chora quase todas as noites nas favelas do Brasil, sejam elas no Rio de Janeiro, em Guarujá ou em alguma periferia da Bahia (onde a PM conseguiu o êxito de ultrapassar a do RJ e se tornar a polícia que mais mata no Brasil – e é um Estado governado pela “esquerda”!). E não há quem as console. Não há remédio para a morte cruel de um filho. Não há consolo que dê jeito. Só resta a raiva, a indignação e a fúria.
Não! Não há discurso de perdão nesse momento. Nossas polícias são assassinas, violentas, e existem para ser assim. Precisam ser destruídas. O modelo de polícia repressiva, genocida e racista não pode mais existir no Brasil. Não tem mais conversa. É um organismo podre que já cheira mal. A Polícia Militar, no Brasil, não é um órgão atingido por um câncer. Ela é o câncer! E onde estiver vai “metastasear”. Sua existência é destruidora, perversa e corrupta. As milícias são a prova disso. E é sempre bom lembrar que tivemos, recentemente, um presidente miliciano. Alastrou. Não tem mais jeito.
Já passou da hora de se rever o modelo de segurança pública no Brasil. E isso vai envidar esforços de todos os setores da sociedade, mas principalmente vontade política do governo. Porque não é uma “pauta popular”. Não dá votos. Muito pelo contrário, talvez. Mas ou se faz ou seguiremos reféns da necropolítica que nos acompanha desde os tempos da escravidão. São os corpos pobres e negros que continuarão saciando o cio de morte dos “cidadãos de bem”. Thiagos e Ágathas continuarão morrendo em nosso chão, e o sangue deles sobe aos céus como clamor por justiça.
Mais espanto ainda me causa o silêncio dos cristãos diante de tudo isso. Quantas igrejas farão orações por justiça no próximo culto? Ou seguiremos abençoando as armas dos policiais assassinos? Nosso silêncio é cúmplice. Thiago era de uma igreja evangélica na sua comunidade. Em Guarujá um dos mortos era pastor. Enquanto isso as igrejas continuam “coando mosquitos e engolindo camelos.” Quem manda na PM é Herodes. E se depender dele, não haverá crianças vivas nas favelas. Elas sempre serão a ameaça de que, dali, pode surgir a revolução, o “novo reinado” que brota do chão e do povo. “No estandarte vai escrito que ele voltará de novo, que o Rei será bendito, ele nascerá do povo!” já cantava o poeta.
“Herodes” sabe disso... e não descansará enquanto não aniquilar toda esperança de vida nas periferias. Mas ele não vencerá... resgatando a memória do profeta Jeremias, que Mateus chama em seu texto, ele continua dizendo: “Assim diz o Senhor: "Contenha o seu choro e as suas lágrimas, pois o seu sofrimento será consolado", declara o Senhor. "Eles voltarão da terra do inimigo. Por isso há esperança para o seu futuro", declara o Senhor. "Seus filhos voltarão para a sua pátria.” (Jeremias 31:16,17) A salvação virá da periferia... e ela será negra... e mulher!
E pensar que tudo aconteceu na “Cidade de Deus”...
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.