Eu era um molecão quando um conterrâneo recém-chegado de volta de uma viagem ao Paraná contou num boteco da minha cidade no Sul de Minas que viu lá um trecho de um caminho que ligava o litoral brasileiro aos Andes, e que por ele os índios (não se usava a palavra indígenas) brasileiros tinham contato com os Incas.
Quando ele saiu, o dono do boteco falou: “Ô, sujeito mentiroso! Vê se pode?!”. Eu não tinha conhecimento nenhum sobre isso, mas concordei com o dono do boteco. “Vê se pode!?”.
Já adulto e com muito interesse pelos povos indígenas e sua(s) cultura(s), e também pela História do Brasil, depois de ler muito sobre o assunto, acabei sabendo que o “mentiroso” tinha falado verdade.
E fiquei sabendo também que o tal caminho se chamava Peabiru, palavra que tem várias traduções, uma delas, “caminho estreito”. Tinha um metro e 40 centímetros de largura e era ladeado por pequenos barrancos com uns 40cm de altura.
Li e me interessei demais por esse caminho lendário. O Ohi, cartunista, ilustrador e escritor, meu parceiro de vários livros, também se interessou e me propôs que escrevêssemos a quatro mãos um romance sobre ele, destinado principalmente a jovens. Muitas coisas importantes da nossa História são jogadas no lixo, e não fosse a garra de umas poucas pessoas, principalmente a jornalista e pesquisadora Rosana Bond, que se dedica ao tema há mais de trinta anos, a história desse caminho milenar também estaria. Daríamos uma pequena contribuição para que ele se tornasse um pouco mais conhecido dos brasileiros.
Assim, escrevemos “O Voo da Canoa – aventura e mistério no Caminho do Peabiru”. Publicado pela Editora Terra Redonda. Para isso estudamos muito a cultura Guarani e a Inca, a história do próprio Peabiru... e a principal fonte para nós foram livros da catarinense Rosana Bond, maior pesquisadora e conhecedora da História do Peabiru.
O Peabiru não era um caminho único, tinha vários ramais. Do litoral paulista, um ponto de partida dele era Cananeia, e outro era São Vicente. Este último passava pela cidade de São Paulo e seguia rumo ao Paraná, onde se encontrava com um que subia pelas margens do rio Itapocu, no litoral catarinense.
Restam poucos vestígios do Peabiru. Mas de uns tempos pra cá a história desse caminho, verdadeiro patrimônio antropológico, vai se tornando de interesse cultural e turístico. E pode render dinheiro público. Se for localizado um trecho do Peabiru em algum lugar, um bom trabalho de divulgação, pode render bons frutos, atrair turistas e conseguir verbas para tornar o local mais atraente, não é?
Por onde passava, em Santa Catarina?
Os primeiros europeus ao chegarem aos Andes, segundo os livros escolares, foram os espanhóis comandados por Francisco Pizarro, que partiram do Panamá pelo Oceano Pacífico em 1532 e, como “bons” colonizadores, arrasaram o Império Inca. Quando a expedição de Pizarro chegou lá, calculava-se que o império tinha 15 milhões de habitantes. Dez anos depois, a população estava reduzida a 1,5 milhão. Doenças levadas pelos colonizadores foram as causadoras da maior parte das mortes, mas muitos morreram pelas armas, assassinados.
Mas o primeiro europeu a chegar aos Andes não foi Pizarro com seu exército. Cerca de dez anos antes, Aleixo Garcia, português a serviço da marinha espanhola, cujo navio naufragou perto da ilha de Santa Catarina (então “pertencente” à Espanha, pelo Tratado de Tordesilhas), foi recebido pelo povo Carijó, que lhe falou desse caminho e das riquezas existentes nas altas montanhas do oeste do continente. Com centenas de guerreiros do povo Carijó, de língua guarani, Garcia foi até os Andes e saqueou alguns povoados até ser repelido pelo exército Inca.
O caminho usado por Garcia partia das margens do rio Itapocu, de onde seguia para o Paraná. Não há relato nenhum de que esse caminho passasse por onde hoje é Joinville. Mas um vereador de Joinville, Henrique Deckmann (MDB), com o objetivo de atrair turistas (e dinheiro, claro) para Joinville e Garuva, vem propagandeando que o Peabiru passava por lá. Rosana Bond denunciou isso como uma propaganda enganosa que desvirtua a história. O vereador, tentando censurar e intimidar a pesquisadora, procurou a polícia com a acusação de que ela o estaria ameaçando e teria praticado calúnia, injúria e difamação.
Markun confirma o que disse Rosana
O conquistador espanhol Álvar Núñez Cabeza de Vaca foi nomeado governador do Rio da Prata e, para ir a Assunção, onde assumiria o cargo, fez o mesmo caminho que Aleixo Garcia.
O jornalista Paulo Markun, grande conhecedor da história catarinense (escreveu inclusive uma biografia de Anita Garibaldi), pesquisou durante dez anos a história de Cabreza de Vaca, para escrever um livro sobre ele, e tem autoridade para falar do Peabiru, caminho utilizado pelo conquistador. Ele descreve a viagem de Cabeza de Vaca iniciada em outubro de 1541, depois de permanecer sete meses da ilha de Santa Catarina, e afirma (com base em documentos obtidos no Arquivo das Índias, em Sevilha, na Espanha), que uma expedição foi até a foz do rio Itapocu, onde se dividiu. Uma parte voltou, seguindo rumo a Buenos Aires, e Cabeza de Vaca seguiu continente adentro ladeando o rio, com 24 cavaleiros, 50 arcabuzeiros, 50 espadachins, 100 arqueiros e centenas de índios Carijó...
Segundo Markun, Cabeza de Vaca narra com clareza o caminho que fez, ladeando esse rio, depois subindo a Serra do Mar, para chegar aos campos paranaenses perto da atual cidade de Tibagi e continuar até Assunção. “Se alguém escreve outra coisa sobre isso, eu tenho a impressão que isso não confere com a realidade. A jornalista Rosana Bond é uma antiga batalhadora pela questão do Peabiru. Conversei com ela várias vezes ao longo do desenvolvimento desse livro e pelo que eu saiba ela tem plena concordância com o que está escrito aqui e que tem a ver, por sua vez, com aquilo que tem no arquivo da documentação do Arquivo das Índias, em Sevilha”.
Ou seja: Rosana Bond tem razão total em denunciar o que chama de farsa sobre a tentativa de distorcer a história, mudando o trajeto do Peabiru. Joinville não precisa disso. É a maior cidade do estado de Santa Catarina, é rica, tem muitas indústrias, muita cultura, a Escola de Teatro do Balé Bolshoi, única no Brasil, e muitas atrações turísticas.
Frequentei muito a cidade de São Francisco do Sul, que fica numa ilha próxima a Joinville, e toda vez que ia lá dava uma parada nesta cidade para aproveitar um pouco de suas qualidades, inclusive de sua culinária. E muitas vezes fui lá visitar bons amigos, nem chegando a esticar até a bela São Francisco do Sul. Joinville é uma cidade boa, agradável, mas como nada é perfeito, a grande maioria do seu eleitorado é bolsonarista, como o próprio vereador. Enfim, senhor vereador, Joinville tem muitos atrativos. Repito: não precisa disso, distorcer a história para a engrandecer ainda mais. E intimidar Rosana Bond pega mal.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.