CALCANHAR DE AQUILES

O vandalismo que a prefeitura do Rio não mostra – Por Monica Benicio

Mortes frequentes, baratas, portas abertas e lataria enferrujada. Eduardo Paes deveria pagar o cidadão por usar transporte público no Rio

O BRT do Rio de Janeiro.Créditos: Guilherme Gomes/Plataforma Coletiva Colaborativa Ônibus Brasil
Escrito en OPINIÃO el

Imagina você ter apenas 18 anos, sair para trabalhar de manhã cedo com sua irmã, pegar um transporte público abarrotado na Zona Oeste do Rio e, em uma curva, a porta do veículo abrir e arremessá-lo a metros de distância, tirando sua vida dessa forma banal e violenta. Foi o que aconteceu semana passada com Thalita Gabriela. Infelizmente, esse não é um acidente isolado.

Um mês antes, em 24 de abril, Marcos Vinicius, estudante de 15 anos, também foi arremessado do BRT na Zona Oeste e morreu no local. Pelo menos desde novembro de 2022, já foram 9 episódios de passageiros arremessados de ônibus no Rio, 5 destes na Zona Oeste. Eu até acredito em coincidências, mas não admito morar e ser vereadora de uma cidade onde pegar um ônibus pode ser uma aventura de morte, de forma tão comum e grotesca.

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Durante todo o ano de 2022, foram 87 colisões e 44 atropelamentos envolvendo BRTs. Este ano, o quadro conseguiu se agravar mais ainda. Em apenas um mês e meio, foram 15 colisões e 16 atropelamentos. Mas nenhum desses casos entrou na conta da prefeitura do Rio ou em suas propagandas de transportes novos e fresquinhos.  

Parece que a estratégia do Executivo é outra. Com um linguajar de justiceiro, que beira ao “cidadão de bem”, o prefeito tem exposto imagens de pessoas depredando e roubando o transporte público, em especial, seu controverso empreendimento de sucesso: o BRT. Uma tentativa de camuflar uma gestão de descaso com o transporte público do Rio.

Caçador de likes e polêmicas, Eduardo Paes usa as redes sociais para compartilhar vídeos de câmeras de segurança, incentivando que outros usuários façam o mesmo. O curioso nesse caso é uma campanha tão engajada na defesa do transporte público começar no mesmo mês que as passagens de ônibus, BRT e VLT foram reajustadas para R$ 4,30, e depois de um final de ano marcado por acidentes e óbitos nos coletivos. Seria a desculpa perfeita para impor mais um aumento abusivo e lucrativo para a máfia dos transportes? 

Além do aumento no próprio bolso, a população do Rio de Janeiro paga, afinal é dinheiro público, R$ 6,20 para o consórcio como subsídio para a tarifa social. Ainda tem um bônus por quilômetro rodado, ou seja, a prefeitura paga um benefício para as empresas por simplesmente cumprirem sua obrigação de colocar os ônibus rodando. Como que para se desculpar pelas regalias que são de praxe para quem é amigo do grande empresariado, o prefeito determinou que o aumento fosse vinculado à obrigatoriedade de toda a frota circular com ar condicionado. Essa promessa feita no auge do verão continua sendo uma ilusão para a maior parte dos trabalhadores da Zona Norte e Oeste. E já estamos entrando no inverno. 

Não é novidade que a questão dos transportes é o “calcanhar de Aquiles” de Paes. Durante a pandemia, segundo pesquisa do Instituto Rio21, transporte era o indicador de pior avaliação do governo, considerado ruim ou péssimo por 52,8% da população. Em uma busca simples, é possível ver ônibus no Rio infestados de baratas, sujos e enferrujados. Além disso, não são poucas as denúncias de que a acessibilidade não funciona e que muitos se movimentam de portas abertas. Ônibus enguiçados são também cena bem comum quase toda semana para quem passa pela Avenida Brasil. 

Será que foram os “vândalos” que implantaram ninhos de baratas, jogaram oxidantes nos ônibus? E, quem sabe, tenham se infiltrado para sabotar a mecânica só para estragar o belo trabalho do prefeito? Será que é ao vandalismo, como uma entidade sombria e sobrenatural, que o prefeito quer imputar as mortes e acidentes também? 

Antes que digam que a ideia aqui é justificar o vandalismo com a pobreza, eu vou direto ao ponto: a ideia de que o vandalismo é o que transforma o transporte bom e adequado em ruim provém de dois pensamentos elitistas e nenhum pouco realistas: o primeiro de que a maior parte da população pega transporte para acessar a cidade. Na verdade, a maioria da população, que mais usa o transporte público, continua privada de acessar a cidade. A cidade continua sendo um mundo distante depois do túnel feito para outras pessoas serem felizes nela. 

E o segundo, de que deveríamos ser gratos por viver de uma maneira precária e ainda ter um transporte decente. A ideia de que o serviço público é um favor para o pobre é inversa à ideia de que o que é público é do povo, não acha? Então, quando o prefeito aponta o vândalo ele não está fazendo o papel dele e tomando uma providência para aquilo. Na verdade, ele está dizendo à população que se ela quiser um bom transporte, que ela puna os ingratos.  

Isso, no contexto de tantas mortes que, até o momento, também não tiveram investigações concluídas e aplicadas as devidas punições à concessionária. Não é só desonesto. É muito cruel!

Enquanto a prefeitura se concentra nos vândalos, deixa de dizer ao usuário que o transporte público não deveria nem ser pago; que a condição de renda dele deveria permitir que ele pudesse usar esse transporte também para lazer, para se divertir com a família; que esse transporte deveria ser parte do acesso aos mais diversificados equipamentos e regiões da cidade, onde ele pudesse andar e viver livremente. Principalmente: não é normal você morrer a caminho do trabalho por causa das más condições de transporte da sua cidade. O que é de direito fica em segundo plano.  

Lembro que em 2013, quando as “Jornadas de Junho” estouraram, vi muitos pixos que diziam “Vândalo é o Estado”, em resposta à criminalização dos atos que se radicalizaram, coisa que é extremamente comum em cidades que são consideradas muito organizadas e civilizadas, como Paris, por exemplo. 

Acho ainda mais irônico que, naquela época, o estopim para as grandes manifestações tenha sido exatamente o aumento do preço dos transportes. Porque o povo sabe que transporte caro é também uma forma de violência e que é muito mais fácil apontar o problema superficial do que investir numa cidade inclusiva, viva e feita para quem trabalha para deixar ela de pé. Do Jardim Botânico não dá para ouvir o sufoco. De lá, a vida só é transmitida através de uma câmera de segurança mesmo.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.