CID BENJAMIN

Ou o veado morre, ou a onça passa fome

O exercício da política pressupõe conflitos. E, nele, muitas vezes, é necessário desagradar alguém. Não vai dar para que sempre todos fiquem satisfeitos. Alguém perde.

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e o presidente Lula.Créditos: Ricardo Stuckert
Escrito en OPINIÃO el

É sabido que quem define os termos em que é travada uma discussão está a meio caminho de vencê-la.

É sabido, também, que o Brasil tem um dos piores perfis de distribuição de renda em todo o mundo. Chega a ser pornográfica a nossa gigantesca exclusão social.

E é sabido, ainda, que uma das formas com que se pode enfrentar essa chaga é uma reforma tributária – ou seja, o redesenho da arrecadação de impostos, de forma a cobrar mais dos ricos, não deixando para os pobres e remediados as maiores parcelas do que é arrecadado.

Pois bem. a equipe econômica do governo Lula tem anunciado que, em breve, mandará ao Congresso uma proposta de reforma tributária. Seria algo positivo. Afinal, há décadas se reconhece que esta é uma necessidade.

Mas estranhei quando soube que a proposta de reforma do ministro Fernando Haddad estava sendo elogiada pelo Centrão, pelo sistema financeiro e por Arthur Lira. Desconfiei que algo estava errado. Mas, logo, compreendi as coisas. A proposta não era exatamente de uma reforma tributária; era apenas de algumas simplificações na forma de cobrança de impostos, tornando-a mais racional. Não mudava substancialmente nada e muito menos mexia com privilégios dos ricos. A expressão “reforma tributária” – que, a rigor, é um assunto, um tema, e não exatamente uma proposta específica – estava sendo usado de forma imprecisa. 

De qualquer forma, esta é uma questão que vai estar mais presente na ordem do dia. E precisa estar.

O desempenho de Lula em suas recentes viagens ao exterior tem lhe trazido merecidos elogios e um aumento de prestígio. Seus discursos em Paris foram admiráveis. E, sem dúvida, ajudam a construir defesas contra eventuais tentativas golpistas no País ou contra tentativas de emparedamento por parte da direita que controla a maioria do Congresso. 

É indiscutível que o presidente brasileiro é, hoje, uma das personalidades mais respeitadas no mundo. Isso é muito bom. Seria preciso aproveitar a situação para avançar o quanto for possível. O redesenho em muitos aspectos da cobrança de impostos no País é um dos terrenos em que se pode fazer isso.

Mas a proposta de “reforma tributária” de Haddad - que merece ser escrita assim mesmo, entre aspas - não faz isso. Continua com a ênfase na taxação do consumo, e não na propriedade e na renda. Ao manter indireta a maior parte dos tributos, não modifica um princípio que prejudica os pobres, de forma que estes acabam pagando proporcionalmente mais impostos do que os ricos. Um milionário e um miserável pagam o mesmo imposto na garrafa de água que consomem. E isso vale para os demais produtos consumidos.

Precisamos de uma reforma que modifique a distribuição da carga fiscal, afrouxando a situação para as camadas de baixa renda.

Não se trata de onerar a classe média, que é quem mais paga Imposto de Renda, mas de mudar o perfil dos contribuintes, hoje profundamente marcado por desigualdades. Assim, os bancos, apesar de seus lucros fabulosos, pagam percentualmente menos do que os assalariados de classe média.

Outra coisa: a proposta de Haddad não taxa as grandes fortunas (o que já está até mesmo na Constituição, embora não seja aplicado por não ter sido regulamentado). 

Tampouco aumenta a cobrança de impostos sobre grandes heranças (e isso existe até nos Estados Unidos, não é coisa de esquerdista). No Brasil esse imposto é irrisório.

Mantém a isenção para lucros e dividendos, uma forma descarada de favorecer os tubarões, que, ao contrário da classe média, se aproveitam dela para receber integralmente seus proventos e não pagar impostos sobre o que ganham. 

Não muda radicalmente a tabela de Imposto de Renda das pessoas físicas, o que faz uma grande parcela da classe média pagar a mesma alíquota dos assalariados super-ricos. 

Há, ainda, outros exemplos que chegam a ser caricaturais. Vejamos alguns.

O dono de um carro, mesmo de um modelo popular, paga o Imposto sobre Veículos Automotores (IPVA). Muito justo. Mas se, em vez de carro, o cidadão tiver um iate, um jet-ski ou um jatinho, estará isento do IPVA, embora esses veículos sejam também automotores. É um escárnio.

O dono de um imóvel urbano, paga todo ano o IPTU (Imposto sobre Propriedade Territorial Urbana). Também muito justo. O montante é calculado pela prefeitura a partir do valor venal da propriedade. Mas se o imóvel for rural, e não urbano, o ITR (Imposto Territorial Rural, o equivalente ao IPTU no campo) é baseado numa declaração do valor feita pelo proprietário. Naturalmente, os donos das terras subestimam seu valor para pagar menos imposto. 

Espantoso, não? 

Mas, se o leitor está abismado, prepare-se. Se aquela terra for desapropriada legalmente para fins de reforma agrária ou outra destinação qualquer, a indenização não será equivalente ao valor declarado pelo proprietário ao pagar imposto. É feita uma avaliação independente para se saber o valor de mercado da terra e, a partir dele, o proprietário é indenizado por esse valor.

É isso mesmo. Há um valor na hora de pagar imposto. Outro, na de receber indenização. 

Não há imposto progressivo sobre áreas rurais improdutivas, de forma a desestimular que permaneçam inaproveitadas.

Alguém dirá que a maioria reacionária do Congresso não vai aceitar mudanças sobre estes e outros pontos. Mas, será que um governo progressista só deve propor o que, de antemão, sabe que será aceito pela direita e pelo Centrão? 

Será que questões como as levantadas acima não podem ser levadas para a sociedade? 

Será que Lula não pode, em algum momento, informar e levar para a opinião pública - inclusive usando mecanismo legais de que dispõe, como cadeia de rádio e TV - suas propostas? Por que não fazer isso, tornando possíveis mudanças maiores do que as que deseja a direita?

Ora, o exercício da política pressupõe conflitos. E, nele, muitas vezes, é necessário desagradar alguém. Não vai dar para que sempre todos fiquem satisfeitos. Alguém perde.

Afinal, como diz o capiau, há situações em que ou o veado morre, ou a onça passa fome. 

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum