SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS

“Enxame”, história de uma fã – Por Cesar Castanha

Não indico que a série seja um acerto indispensável, mas oferece ainda algo complexo e criativamente abundante

Créditos: Divulgação
Escrito en OPINIÃO el

Existem algumas semelhanças óbvias entre a recente série “Enxame” (criada por Donald Glover e Janine Nabers, 2023) e o filme “Louca obsessão” (dir. Rob Reiner, 1990). As duas obras tratam, de algum modo, sobre uma cultura de fãs que flerta com a violência (ou com uma performance de violência), as duas se baseiam muito livremente em relações reais e reportadas entre fãs e ídolos e, enfim, também se sustentam em torno de uma atuação feminina excessiva. Assim, enquanto a fã Annie Wilkes de Kathy Bates sequestra um alter ego de Stephen King para forçá-lo a dar continuidade ao seu livro favorito em seus próprios termos em “Louca obsessão”; Dominique Fishback, interpretando Dre, atravessa os Estados Unidos em uma sequência de assassinatos em oposição aos haters de Ni’Jah, uma bastante explícita referência a Beyoncé, em “Enxame”.

Essa comparação, no entanto, leva-nos a reconhecer duas diferenças fundamentais entre elas. A primeira, é que “Louca obsessão” é um filme de suspense que atende às convenções genéricas do formato: ele é centrado no sequestro de um escritor e em suas repetidas tentativas de fuga. King, como autor da história original em que o filme se inspira, e o roteirista William Goldman assim fazem uso de um gênero conhecido para estabelecer Wilkes como uma metáfora, uma sátira e um desvio excessivo do tipo de demanda de leitores e fãs sofrida por King (e, quando o filme é mais interessante, também uma metáfora para o bloqueio de criatividade e para a relação entre o autor e um mercado mais amplo que demanda novidades dele). Não há expectativa de que Wilkes seja uma personagem real, ela é um desvio hipotético, uma rasura ficcional dessa relação entre autor, indústria, obra e leitores.

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A princípio, Dre se apresenta também como um semelhante desvio hipotético, uma apropriação excessiva do fenômeno cultural da beehive, como o grupo de fãs da artista Beyoncé se refere a si mesmo – em uma analogia de que a diva pop seria a abelha rainha e os fãs, a sua colmeia. Ocorre, no entanto, que “Enxame” não segue uma forma genérica em que se desdobra, excessivamente, um trabalho metafórico. Pelo contrário, ainda que a linguagem da série não siga uma fidelidade realista – ela é inclusive, como as outras obras de Glover (a série “Atlanta” e seus videoclipes, por exemplo), bastante estilizadas e dotadas de uma postura irônica –, existe ali um desejo de ser reconhecida e interpretada como um referente de fenômenos da realidade. Esse desejo é manifesto de três formas: por cartelas que indicam que os eventos retratados são reais e que as semelhanças com a realidade (a cultura de fãs em torno de Beyoncé) não são coincidência; por um episódio em formato de mockumentary – uso farsesco e cômico da linguagem do documentário – que termina com uma pretensa ruptura do acordo ficcional ao colocar em cena Donald Glover dando uma entrevista sobre a produção da série “Enxame”; e as entrevistas feitas com os dois criadores, em que ambos insistem em reivindicar uma interpretação no sentido de uma potencial realidade da narrativa, esta que foi montada a partir de vários episódios isolados envolvendo a relação entre fãs e divas pop, especialmente Beyoncé, criando em torno desses eventos isolados uma narrativa coerente.

A outra distinção fundamental nessas duas histórias sobre fãs obsessivas está na centralidade da questão racial em “Enxame”. Donald Glover, que começou a carreira como ator e roteirista, mas que hoje apresenta um corpo de trabalho que vai da música ao audiovisual, é uma personalidade frequentemente reivindicada como autor. Quando digo isso é no sentido de entender que a discussão crítica sobre os projetos de Glover envolve hoje alguma consideração à particularidade desses trabalhos, ao que faz deles uma obra de Donald Glover. Parte disso está associada à maneira como Glover trata a questão da diferença racial na contemporaneidade estadunidense. Diferenças performáticas, culturais, artísticas e econômicas da negritude estadunidense interessam a Glover em sua obra. E “Enxame” não é diferente. Então, além de uma série sobre cultura de fãs, esta é também uma série sobre as experiências pretas com a cultura de fãs.

Esse conjunto faz de “Enxame” um corpo de trabalho intrigante por si só, uma obra que se amplia para alcançar uma complexidade discursiva, em que nem a sua leitura para a negritude e a diferença racial na cultura estadunidense (incluindo a cultura de fãs) nem uma problemática da performance e da alteridade (questões que a série também mobiliza) são exatamente resolvidas. Esse campo intrincado de ideias, discursos e gestos audiovisuais já diferencia “Enxame” de outras obras que comentam ou criam expectativas em torno de culturas virtuais dos memes, fanbases e de um humor produzido para viralizar. Faço essa digressão porque, no mesmo fim de semana em que assisti a “Enxame”, vi o filme “O urso do pó branco” (dir. Elizabeth Banks, 2023), que se sustenta em uma única piada carismática (um urso que cheirou cocaína), calculada para despertar um engajamento humoroso online de afeição pelo inusitado. É um filme, no entanto, desprovido de qualquer curiosidade formal ou até mesmo do excesso como linguagem. E o inusitado aqui termina muito adequadamente servido a um público de redes sociais. Diante desse jogo confortável entre uma obra de audiovisual e o público, do qual “O urso do pó branco” está longe de ser o único exemplo, ver como “Enxame” se relaciona com essa mesma cultura online com provocação e, em certo sentido, até com antagonismo, parece para mim mais interessante.

Tendo tudo isso em consideração, não é inesperado que eu tenha conseguido me engajar apenas parcialmente com “Enxame”. Isso não ocorre totalmente por uma oposição ao comentário tecido por Glover e Nabers, embora também se motive em parte por ele, no que o texto insiste em uma leitura da cultura de fãs que enxerga apenas obsessão e violência, e não as construções de comunidade, afirmações de identidade e apropriações localizadas de produtos culturais massivos – desdobramentos reconhecidos por pesquisas contemporâneas sobre a cultura de fãs. Não quero, no entanto, transformar este texto em uma oposição à perspectiva discursiva de Glover e Nabers nesse ponto, primeiro porque ainda acho notável como “Enxame” vai na contramão do que se tornou um senso comum sobre o legado cultural de Beyoncé (como disse, acredito que haja muitos desdobramentos positivos desse legado cultural, mas ele ainda é contraditório e atravessado por um interesse de mercado que define limites para a abrangência de discursos e representações possíveis na obra da artista). Depois, porque acredito que eles usam da linguagem do audiovisual, especialmente através da performance de Fishback, para extrapolar esse elemento discursivo ao colocá-lo em cena a partir de gestos excessivos, concentrados em desenvolver uma sensibilidade a partir da ação intensa de Fishback em cena. Falo aqui de seus close-ups, das suas lágrimas, dos seus rompantes de violência, da expressividade de seu olhar, tudo isso que comunica em excesso, mais do que precisa ser dito para estabelecer qualquer mensagem contra a cultura de fãs – e que assim extrapolam essa crítica e superam uma conclusão moralista.

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Glover já tinha o hábito de pensar o lugar do corpo preto na cultura estadunidense a partir de uma diferença gestual. Isso está presente tanto em alguns episódios de “Atlanta” – o mais marcante nesse sentido é “Teddy Perkins”, da segunda temporada, que satiriza a performance racial em torno de Michael Jackson – quanto no que se tornou talvez seu trabalho mais famoso no audiovisual, o videoclipe da música “This is America”. A concluir pelos episódios que escreveu em “Atlanta” (que são poucos demais para se tomar uma conclusão muito assertiva sobre o estilo dela), Nabers dirige um olhar mais contextual para as diferentes experiências de raça em uma cultura integrada (como faz brilhantemente no episódio “Sinterklaas is coming to town”). Tirando essas rudes conclusões, “Enxame” se apresentaria como um encontro cativante desses dois vetores criativos. À exceção do trabalho de Fishback, não indico que a série seja um acerto indispensável, mas oferece ainda algo complexo e criativamente abundante. A série “Enxame” está disponível na plataforma de streaming Prime Video.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.