O PCB foi fundado no dia 25 de março, em 1922. Completa 101 anos de existência, uma façanha histórica em qualquer país, porém, mais significativa ainda, se considerarmos a intensidade da luta política no Brasil. O PCB ainda existe, embora hoje não ocupe um lugar semelhante ao que teve no passado.
Em 2009, foi publicada a primeira edição do livro de Carlos Zacarias, “Os impasses da estratégia, os comunistas, o antifascismo e a revolução burguesa no Brasil” (1936/1948). Ontem, recebi pelo correio um exemplar da segunda edição, editada pela Editora da UFBA (Universidade Federal da Bahia). Escrevi, em 2009, um prefácio e aproveito a oportunidade para divulgá-lo, na sequência, sem correções.
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Este livro nos conta uma história política que uniu heroísmo e tragédia. Os leitores encontrarão nestas páginas uma análise crítica e até severa das formulações do partido de Prestes durante os anos que precedem e sucedem à II Guerra Mundial: neste intervalo o PCB se recuperou da terrível derrota de 1935, quando foi quase destruído, e se alçou à condição de um partido com presença nacional tendo à sua frente o único dirigente político que podia ombrear em popularidade com Getúlio Vargas, Luís Carlos Prestes, para mergulhar depois de poucos anos de legalidade na clandestinidade outra vez.
Este livro nos expõe homens que uniram bravura moral e ruína política. Nas suas páginas os leitores encontrarão uma narrativa envolvente em que as vicissitudes das táticas são explicadas pelos impasses da estratégia, sem diminuir a dimensão humana dos personagens principais, os dirigentes do PCB, que apesar de suas fragilidades e erros, aparecem engrandecidos pela sua abnegação militante. Eles foram, na sua imensa maioria, alguns dos homens e mulheres da mais alta estatura moral e intelectual que participaram das lutas populares no Brasil do século XX. Eles viveram uma época extraordinária e foram capazes de feitos extraordinários.
Este livro nos apresenta um partido que uniu, como nenhum outro do seu tempo, glória e infortúnio. Os leitores poderão compreender porque a direção do PCB, perseguida implacavelmente por Filinto Muller, foi capaz de defender em 1945 a presença de Getúlio no poder, o mesmo Vargas que alguns poucos anos antes tinha entregado Olga Benário aos nazistas alemães. Descobrirão, também, que o autor que desnudou essa desgraça política não deixou de olhar com grandeza para os homens e mulheres que lutaram sob a bandeira do comunismo no Brasil naqueles anos. Alguns deles foram homens de ação, dirigentes de greves e de campanhas políticas nas ruas. Outros foram organizadores de Partido dedicados à formação dos militantes e à construção interna. E houve ainda aqueles que assumiram tarefas intelectuais complexas. Muitos foram levados às prisões sob os diferentes regimes políticos que o país conheceu entre os anos vinte e os anos setenta. Dirigiram sindicatos, associações de bairros, organizações camponesas. Trabalharam, discretamente, na legalidade, e mergulharam na clandestinidade quando se viram obrigados. Resistiram às desmoralizações que vieram com as prisões, cisões e exílios. Fizeram história. Mas, foram, politicamente, derrotados.
Permanecem vivas as controvérsias de critérios para a apreciação histórica dos partidos políticos. Partidos podem ser julgados pelo programa que apresentam para a transformação da sociedade. Ou podem ser explicados pela história de suas linhas políticas e de suas lutas políticas, sobretudo, as internas; pelo confronto entre suas posições quando estão na oposição, e quando se aproximaram do poder; ou até pelos valores e ideias que inspiram sua identidade; pela composição social de seus membros - militantes ou simpatizantes - ou dos seus eleitores, ou da sua direção; pelo regime interno do seu funcionamento; pelas formas de seu financiamento; ou pelas suas relações internacionais. Todos estes critérios são válidos e significativos, e a construção de uma síntese exige uma apreciação da sua dinâmica de evolução. Só não se pode é julgar um partido por aquilo que ele pensa sobre si próprio.
Para aqueles que usam o marxismo como método de análise das relações sociais e políticas, todos estes elementos são significativos, mas uma caracterização de classe é, finalmente, inescapável. O livro que agora estará disponível para todos os interessados na história da esquerda brasileira apresenta uma nova interpretação consistente e fartamente documentada para uma fase chave da história do PCB.
Como tudo que existe, os partidos se transformam, e a narrativa dessas mudanças é o cerne da investigação histórica. Quando a história se resigna a procurar um fio de continuidade ou de permanência nas organizações político-sociais, ela renuncia ao seu maior desafio. Acontece que as mudanças não são possíveis sem crises. O PCB conheceu em sua longa história quatro crises devastadoras. Este livro relata um destes períodos dramáticos. O elemento comum a essas quatro grandes crises foi que o PCB quase desapareceu nas três primeiras, para ressurgir em imprevistas reorganizações e, finalmente, sucumbir, irremediavelmente, na última. O PCB se recuperou das primeiras grandes crises da sua história, mas o fez deixando de ser o que era, porque se transformou de tal forma que reapareceu quase irreconhecível.
A primeira e menos estudada foi a crise da fase da sua estalinização no final dos anos vinte e início dos anos trinta, um processo que consumiu várias rupturas, as principais delas dirigidas por Mário Pedrosa e Hermínio Sacchetta, que deram origem à Quarta Internacional no Brasil.
A segunda foi a crise aberta após o golpe de 1964 e a consolidação da ditadura militar, quando o duplo impacto da derrota diante da contrarrevolução no Brasil e da vitória da revolução cubana, provocou uma explosão do Comitê Central que tinha resistido à cisão pró-chinesa que originou o Partido Comunista do Brasil, sob a liderança de João Amazonas, Pedro Pomar e Arruda Câmara.
A última foi a crise final, aquela que se abriu após 1989/1991, quando da derrubada do regime ditatorial na ex-URSS, quando a restauração capitalista conduzida por uma fração dirigente do próprio Partido Comunista precipitou a desagregação internacional dos partidos até então associados a Moscou.
Muitos autores já escreveram sobre o PCB entre os anos 1936 e 1948, um período de uma dúzia de anos em que o partido de Prestes se recuperou da terrível derrota política do levante militar de 1935 - quando parecia ter sido eliminado pela repressão implacável - e saiu da mais estrita clandestinidade para se transformar, quase da noite para o dia, em um dos maiores partidos comunistas da América do Sul.
Nessa sua segunda crise, as rupturas do núcleo dirigente foram menos significativas que nas outras, e a reorganização foi mais rápida em função do impacto moralizador da situação internacional com a derrota do nazifascismo. A influência de massas conquistada pelo PCB, em 1945, com uma forte implantação nas categorias mais organizadas dos trabalhadores, se expressou na eleição consagradora de Prestes como senador pelo Rio de Janeiro, então, a capital política da nação foi um fato inconteste, porém, em geral, desvalorizado pela historiografia.
A desqualificação do papel histórico que as organizações sindicais e políticas dos trabalhadores e das massas populares tiveram na história do país é um capítulo da batalha ideológica dos nossos tempos. Ao escrever sobre as lutas do passado, os historiadores estão, conscientemente ou não, envolvidos nos combates do presente.
O peso social, político, ideológico e até cultural que o PCB teve na sociedade brasileira foi, proporcionalmente, muito maior que o peso dos PC’s na Argentina e no México, os outros dois países chaves da América Latina. Este acontecimento chave para a compreensão das turbulências do regime democrático-liberal que surgiu ao final da guerra, porque o PCB manteve sua autoridade política sobre os setores mais combativos da classe operária mesmo depois de ter perdido sua legalidade, resultou de um processo de lutas políticas que este livro pretende explicar.
Este é um livro corajoso e original, que desafia tanto a historiografia simpatizante do PCB, quanto a que lhe foi adversa. Ambas coincidiram em identificar o PCB como um partido marxista-revolucionário.
Os leitores de Carlos Zacarias descobrirão que esta interpretação foi sem fundamento. Nos anos trinta, o PCB de Luís Carlos Prestes já não era o mesmo partido de Astrogildo Pereira dos anos vinte. A pesquisa rigorosa nos apresenta a história errática da evolução das orientações políticas PCB, que oscilou da formação da ANL como Frente Nacional Democrática para a insurreição militar de 1935, da tática da União Nacional antifascista contra Vargas para o queremismo de apoio a Vargas em 1945. As habilidades do historiador investigativo uniram-se à verve do intelectual socialista engajado para construir um painel que cobre este período histórico inteiro, contextualizando as flutuações da linha do PCB nos marcos das suas relações com Moscou, do blanquismo tardio do terceiro período ao seguidismo diante de Getúlio.
Os estonteantes ziguezagues da política do PCB no intervalo histórico mais dramático do século XX ainda estavam sem uma explicação histórica meticulosa. A principal razão para essa ausência repousou na dificuldade de compreensão do que foi o estalinismo. O estalinismo emergiu nos anos vinte como um fenômeno histórico novo, e tudo o que é historicamente original e, portanto, único é, para os seus contemporâneos, mais difícil de explicar.
A distância de oitenta anos nos oferece uma vantagem de perspectiva que pode, também, nos enganar. A principal singularidade do estalinismo é que ele não foi uma doutrina, nem muito menos uma política. O estalinismo mudou tantas vezes de política, e abraçou orientações tão diversas e realizou giros tão espetaculares, que os esforços de encontrar coerência interna na evolução das ideias que saíam de Moscou para conduzir a III Internacional frustraram a maioria dos seus estudiosos, fossem eles simpáticos ou avessos aos destinos do regime no poder na União Soviética.
Programaticamente, o estalinismo foi a ideologia nacionalista de um Estado controlado por um aparelho burocrático gigantesco, os pelo menos cinco milhões de funcionários que compunham a denominada nomenklatura, ou seja, o contrário do internacionalismo. Quando a liderança de Stálin à frente da URSS girou da defesa da orientação da Frente Populares contra o fascismo para o Pacto Molotov/Ribbentrop – ao mesmo tempo em que, entre 1936/39, os Processos de Moscou liquidavam fisicamente o que ainda existia de bolcheviques dentro do Partido - os partidos comunistas no Ocidente foram colocados diante do desafio de justificar o inexplicável.
O livro de Carlos Zacarias desenvolve como hipótese de trabalho que o fio condutor para a explicação da política do PCB foi a relação do partido brasileiro com o partido russo. Essa parece ter sido a força de pressão mais poderosa à luz da documentação reunida. Não foi, evidentemente, a única.
Os leitores poderão descobrir nas perguntas que o autor formula as pistas que tentam resolver os enigmas de escolhas políticas que guiaram o PCB: que lições o partido retirou do fracasso do levante militar de 1935? Por que o partido mais perseguido do país procurou, ainda sob a ditadura do Estado Novo, a construção de uma Frente de “União Nacional pela democracia e pela Paz”? Qual foi o papel de Prestes na direção do PCB durante os anos de prisão? Como o PCB se recuperou e reorganizou uma direção nacional a partir das iniciativas dos quadros que surgiram no Pará e na Bahia? Como um partido de vanguarda se transformou em partido com influência de massas na campanha pela participação do Brasil na guerra contra o nazifascismo? Qual a relação do PCB com o regime que nasceu da queda de Vargas? Não teria sido uma injustiça intelectual a avaliação historiográfica dominante que subestima o papel do PCB na luta pela democracia no pós-guerra?
Como em todos os bons livros de História, este nos apresenta uma narrativa do que aconteceu, escapando do perigo de apresentar a sequência dos acontecimentos como uma desconexa sucessão de peripécias fortuitas, ou do seu contrário, um fluxo pré-determinado do que seria inexorável.
O autor respeita o seu tema e desvenda o que permanecia obscuro com a tenacidade de quem busca a verdade, a perseverança de uma mão que não treme, do que resulta uma literatura histórica feita com paixão. Como em todo livro honesto, o autor não se escondeu atrás de suas palavras, e nos revela, também, algo sobre quem o escreveu.
Carlos Zacarias nos entrega seu primeiro livro agora, e como investigador devotado teve o cuidado de filtrar tudo aquilo que era colateral, e manter o foco no que era essencial, porém suas preferências transpiram pelas páginas. Este não é, portanto, o trabalho de um principiante. É a obra de um estudioso maduro que pesquisou muitos anos o seu tema, e que nos surpreende pela consistência teórica e pela fluidez literária de uma escrita inventiva e saborosa.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.