Vencida a dura batalha eleitoral contra Bolsonaro e afastado, por enquanto, tudo o que representava o enorme risco de mais quatro anos de um regime protofascista, é preciso se ter em conta que a gestão de Lula não vai ser um mar de rosas. O quadro internacional não é o mesmo de seu primeiro governo e a busca da “governabilidade” o obriga a concessões ao Centrão, que abriga a direita fisiológica e corrupta.
Sem isso, a maioria reacionária do Congresso ameaça paralisar o governo. Houvesse um movimento de massas forte, a situação seria outra. Mas no quadro atual de relativo marasmo, que, em termos imediatos, até certo ponto independe do governo, parece irrealismo não tentar incorporar no apoio a ele até mesmo partidos de direita.
Os problemas já começaram a aparecer e serão uma constante ao longo do mandato. Afinal, como dizem os chilenos, "quien se acuesta com niños, amanece mojado". Primeiro foi a foto da ministra do Turismo, Daniela Carneiro, do tal União Brasil, que circula com seu marido e mentor político, Waguinho, em terrenos dominados por milícias. O menos importante aí foram as fotos em que ela aparece ao lado de criminosos. Político em campanha está sujeito a isso. Mas parece inegável que seu grupo tem relação com milicianos que operam na Baixada Fluminense.
Depois surgiram denúncias contra Juscelino Filho, também do União Brasil e ministro das Comunicações – cargo estratégico e que certamente não deveria ficar com gente desse tipo. Ele tem um haras e foi flagrado tendo requisitado um jatinho da FAB para participar de um leilão de cavalos. Além disso, usou recursos públicos para asfaltar uma estrada que serve a uma fazenda de sua família.
Nos dois casos, Lula preferiu não demitir os ministros, aproveitando os episódios para exigir do partido deles um apoio parlamentar mais claro. Errou? Pode ser que sim, pode ser que não, mas deve-se ter em conta o equilíbrio instável em que navega o governo, diante de um Congresso que é o que se sabe...
Episódios como estes – e até mais graves - voltarão a aparecer. A imprensa não terá contemplação e nem seria o caso de se esperar o contrário. É preciso, porém, ter presentes duas coisas.
Primeiro, a necessidade de implementar e dar ampla divulgação a medidas que mostrem que há um novo governo, antenado com os problemas do povo. Isso é particularmente importante em relação a promessas de campanha que comecem a mudar a vida as pessoas. Eu me refiro a coisas como reajuste do salário-mínimo acima da inflação, mudança da tabela do Imposto de Renda, reequacionamento das dívidas das famílias, investimentos massivos para a criação de empregos e melhorias imediatas nos serviços públicos, especialmente saúde e educação.
Algumas dessas medidas já começaram a ser tomadas, mas sem um expressivo esforço para dar-lhes ampla repercussão. E, em certos casos, o impacto delas acabou sendo mitigado por declarações do ministro Fernando Haddad, que parece mais preocupado em falar para o mercado financeiro.
O segundo aspecto a se ter em conta é a necessidade de clareza sobre onde se quer chegar. O governo Lula deve cumprir dois papéis: (1) derrotar Bolsonaro, enfraquecendo a extrema-direita e afastando o risco da volta de um governo fascista, e (2) tomar uma série de medidas que, mesmo sem serem reformas profundas que abram caminho para o socialismo, melhorem significativamente a vida do povo, além de interromperem o processo de entrega do patrimônio público e promoverem a defesa da soberania nacional. Esses papéis têm que estar presentes e ele tem que cumpri-los.
É, mais ou menos, como certa vez afirmou o escritor uruguaio Eduardo Galeano, ao explicar para que servia a utopia, já que ela é algo inatingível. Em outras palavras, disse: “Serve para nos mostrar a direção que devemos percorrer”.
O falecido Mestre Marçal, integrante de uma família lendária no samba carioca e grande partideiro, do alto de sua sabedoria popular afirmou em seus versos algo que cabe aqui também: “Quem procura o que não perdeu, quando encontra não conhece”.
E, por fim, coisa semelhante disse Sêneca (4 a.C. – 65 d.C.), pensador romano contemporâneo de Cristo: “De nada serve a direção do vento para o navegante que não sabe onde quer chegar”.
Assim, que o governo Lula faça as concessões necessárias para não ter inviabilizada a caminhada. Mas sem se perder nelas, tendo sempre presente seus objetivos e sabendo que, se frustrar as expectativas nele depositadas, sairá da História pela porta dos fundos.
Isso seria uma tragédia para o povo brasileiro.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.