A falência da Livraria Cultura, de São Paulo, não chegou a ser uma surpresa para mim, pois ela estava em recuperação judicial desde 2018. Fiquei surpreso, sim, quando teve esse pedido de recuperação judicial. E vou contar porquê.
Quando era estudante de jornalismo, antes de ter escrito meu primeiro livro, fiz uma matéria sobre o tal “mercado editorial”. Na época, entendi porque os livros eram caros no Brasil.
Para facilitar a explicação, suponhamos que um livro seja vendido por R$ 50,00 nas livrarias. Como chegaram a esse preço? Aí vem toda a história dos custos desde a gráfica até chegar ao leitor. O autor recebia 10% do preço de venda, ou seja, neste caso R$ 5,00 por exemplar. Isso, seis meses depois do livro chegar a livraria. E muitas vezes nem isso acontecia. As prestações de conta e o pagamento ao autor comumente eram esquecidas, sem contar algumas editoras que falseavam a tiragem do livro e a quantidade vendida.
Pois bem, o problema não está aí. Também 10% do preço era o custo gráfico do livro, quer dizer, o que custava para a gráfica. Ela punha outro tanto (achei justo) como lucro. Então, até aí, eram 20% do preço de capa para a gráfica e 10% para o autor. A editora ficava com outros 20%, o que também achei justo, pois ela pagava revisores, vendedores e outros funcionários, além de aluguel do prédio, impostos, contador... E havia o risco de vender pouco, o que daria prejuízo. Então, somando o que ia para a editora, já estávamos 50% do preço de venda. E os outros 50%? R$ 25,00 no caso de um livro de R$ 50,00. Na época, 20% iam para a distribuidora (essa sim, eu achava que ficava com a parte do leão, porque não tinha muitos custos). Então, sobravam 30% para a livraria. Dos R$ 50,00 do preço de venda, R$ 15,00 eram para a livraria.
Não me pareceu tanto, pois a livraria também tem custos de espaços, funcionários etc. Mas deu para ver que num processo não capitalista, os livros podiam custar bem menos. E custavam: em Cuba, os livros tinham preços acessíveis, comprovei. Certo que as edições lá eram em grande parte em papel jornal, bem mais barato. E como custavam baratíssimo, todo mundo podia comprar e eram comuns edições de cem mil exemplares, quando no Brasil uma edição normal era de três mil exemplares (era... baixou muito de lá pra cá). A explicação de amigos é que aqui, no Brasil, muitos livros nem são lidos, são para serem exibidos em estantes de falsos leitores. Por isso, tinham que ter melhor “aparência”.
Comprovei isso também: uma vez uma agência de publicidade tinha um grande corredor vazio e resolveram decorá-la com uma estante de fora a fora. Mas acharam que livros de tamanhos e formatos desiguais não eram estéticos como queriam. Então mandaram encadernar papel sulfite cortado ao meio e assim encheram uma enorme estante de falsos livros decorativos. Recentemente, pouco antes da pandemia, fui a um sebo muito bom e vi uma mulher negociando a compra de não sei quantos metros de livros. Não interessava do que tratavam, só tinham que ter capa dura, todos do mesmo tamanho, para decorar sua sala. Tinha que parecer culta, e uma estante repleta de livros pegava bem.
E mudou... para pior!
A Livraria Cultura era uma referência em São Paulo. Num endereço privilegiado, tinha uma boa loja, depois abriu outra ao lado, até que assumiu o espaço que antes era do Cine Astor, um dos maiores de São Paulo, que fechou. Ficava no mesmo endereço, no Conjunto Nacional, esquina da rua Augusta com a avenida Paulista. Virou um verdadeiro supermercado de livros.
Eu sempre considerei livreiros e editores como pessoas apaixonadas por livros. Mas isso foi mudando. Alguns grandes livreiros se revelaram comerciantes pura e simplesmente. Para eles, parecia não interessar se o que vendiam era livro, batata, bacalhau ou macarrão. E queriam lucros, só isso.
Ah, faço uma pausa aqui para me lembrar do Aldo Bocchini, fundador da Livraria da Vila, que tinha só uma loja, na Vila Madalena. Ele era um apaixonado por livros, um livreiro autêntico. Só comprava livros lá. Além do Aldo, tinha atendentes conhecedores de literatura. Continuei preferindo a Livraria da Vila depois que ele a vendeu.
Volto ao assunto da sanha lucrativa. Para começar, esses grandes livreiros dispensaram o intermediário, o distribuidor. Maravilha, se fosse para baratear. Mas não: era para ficar com a parte dele, abocanhar mais 20% do preço dos livros. Passaram a ter 50% para eles. Mas não se contentaram. Sentindo-se poderosos para negociar com as editoras, aumentaram sua cota para 60%, e soube de alguns querendo 70%. Quer dizer: sobrava 30% para serem distribuídos entre o autor, a editora e a gráfica. Sem contar extensão no prazo para pagamento.
Livros em destaque
Quando a gente entra numa dessas livrarias, tem estantes ou mesas com livros em destaque. A impressão que dá aos incautos é que ali estão os melhores livros, os mais recomendados. Mas não: a livraria cobra (e não é pouco) para colocar livros ali. Na Cultura a tabela era salgada, me contaram uns editores. Quanto mais visibilidade tinha o espaço em que se colocava o livro, mais caro. E não é só lá. Desconfiem...
Eu sei que fiz um lançamento numa determinada livraria em que a própria vendedora, minha amiga, se impressionou com a quantidade vendida, pois era uma coleção com vários exemplares e muita gente compareceu para comprar a coleção inteira, e muita gente para comprar livros avulsos, parte da coleção. Comentei com ela: “Então espero que com esse lucro o dono coloque meus livros em destaque nessa mesona”. Nada disso... Foram para rodapés de prateleiras. Sem pagar, nada ali. Não é à toa que grandes editoras tenham tanto espaço nesses lugares de destaque. O (mais uma vez) incauto que quer comprar um livro pra presentear alguém acredita que nesses lugares estão os melhores deles. Só vai procurar nas prateleiras quem tem um livro, autor ou assunto em mente.
Tem outra coisa: a qualidade dos atendentes, como já citei. Na Livraria da Vila, na Vila Madalena, dava até prazer em conversar com eles sobre alguns livros. Conheciam tudo! Além de cultos, eram cordiais, boa gente. Acho que ainda são, mas, com pouca grana, tenho ido pouco lá, tenho que comprar em sebos.
Quando abriu a Fnac, funcionando num prédio de quatro andares, continuei indo à Livraria da Vila. Essas livrarias tipo supermercado de livros me parecem muito impessoais. Um dia, precisei comprar um livro do João Ubaldo Ribeiro para presentear uma aniversariante, e não tinha na Livraria da Vila. Podia encomendar, mas chegaria depois do aniversário da amiga, então fui à Fnac, um monstro de loja, e me dirigi à parte de literatura nacional. Perguntei ao atendente onde ficavam os livros do João Ubaldo e ele fez cara de que eu estava querendo demais, perguntou quem era esse João Ubaldo Ribeiro. Saí de lá e fui procurar em outro lugar. Como uma livraria contrata alguém que não conhece livros e autores para atender os leitores?
Ainda sobre a Fnac, quando publiquei o “Anuário do Saci”, pela Publisher Brasil, uma vendedora da editora foi oferecer a essa lojona. O comprador perguntou pelo catálogo da editora, a moça disse que era uma editora nova e ainda não tinha um catálogo, só tinha uns poucos livros publicados. Resposta do comprador: “Gostei do livro. Se fosse de uma editora grande, comprava no mínimo 50 exemplares pra começar, mas dessa editorazinha não vou comprar nenhum”.
Tinha isso também (e ainda tem muito): desprezo por pequenas editoras. E ao mesmo tempo, grandes editoras passaram a desprezar pequenas livrarias, preferindo vender por atacado a essas livrarias monstros e redes de livrarias. Resultado: muitas livrarias pequenas foram fechadas, e quando a Cultura entrou em recuperação judicial, muitas editoras levaram um baque. Com justiça, muitos ex-donos de pequenas livrarias festejaram.
Lançamentos em livrarias
Nos lançamentos de livros, há uns tempos, em vez de 30%, a livraria ficava com a metade do valor, 50%. E isso se justificava: ela oferecia o espaço e geralmente um coquetel, com vinho e tira-gostos, geralmente um mix de amendoim e castanhas. Certo que tinha convênio com produtores de vinho, e não custavam para eles, mas tinha o garçom, sei lá se era pago pela livraria.
Mas eram lançamentos que atraíam tanto os convidados do autor e da editora quanto os frequentadores habituais da livraria, além de uns bicões que iam bebericar de graça, com direito a tira-gostos.
Há uns quatro ou cinco anos, um amigo lançou um livro na Livraria Cultura. Conversando com ele, vi que a coisa piorou muito. Antes, algumas livrarias exigiam que se vendesse uma certa quantidade de livros, se não vendesse, o autor ou a editora ser responsabilizava, pagava como se tivessem sido vendidos.
Já nessa época, vejam como aceitaram o lançamento do livro lá: a livraria ficaria com 80% do valor de cada livro, e se não vendesse no mínimo 60 exemplares, tinham que pagar a ela. Mas ficou também por conta do autor a divulgação e até o vinho e o amendoim. Ah... e para deixar uns livros lá, para venderem depois? Também queriam 80% do preço de venda, e mais: tinha que dar 50 livros de graça. Só do livro número 51 em diante ele receberia 20% dos valor vendido, a serem recebidos dali não sei quantos meses.
Não é à toa que aumentaram muito os lançamentos em bares. O autor ou editora fica com 100% do valor vendido e o dono do bar fica feliz com o aumento da freguesia.
Então, me pergunto:
Nessas condições, como conseguiram falir a Livraria Cultura? Como dizem no interior, nesse mato tem coelho.
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