CONEXÕES

Aqui dentro e lá fora, no filme “Batem à porta” – Por Cesar Castanha

A casa na floresta, na tradição literária e filosófica estadunidense, estabelece uma relação interessante entre o sujeito que nela se abriga e o mundo de fora

Créditos: Divulgação
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O novo filme de M. Night Shyamalan, “Batem à porta”, concentra-se, em sua maior parte, em um único cenário nos interiores de uma cabana na floresta em que três de seus personagens passam as férias. Há um dado de reclusão que me interessa aqui. A casa na floresta, na tradição literária e filosófica estadunidense, estabelece uma relação interessante entre o sujeito que nela se abriga e o mundo de fora. O caso mais notório de retirada para esse tipo de lugar é provavelmente o de Henry David Thoreau, um autor central tanto para a literatura quanto para a filosofia política do país. Thoreau se isolou na floresta enquanto escrevia “Walden”, mas o seu movimento entre a integração e o isolamento na sociedade é bem mais complexo, alcançando seu ponto mais crítico quando o autor é preso por não pagar impostos, em protesto pela economia da escravidão e pela guerra com o México.

Essa digressão que faço é justificada por um problema do isolamento que é elaborado visualmente por Shyamalan no motivo da cabana na floresta (que aparece já no romance “O chalé no fim do mundo”, de Paul Tremblay, do qual o filme é adaptado). Para fundamentar a questão posta pelo filme (de sacrifício, de uma dualidade entre família e humanidade, entre os interiores da cabana e o mundo fora), é preciso que esse jogo entre se isolar do mundo e fazer parte dele esteja bem resolvido. O possível trunfo da obra literária e da política de Thoreau é que ele nunca se isolou de nada ao se reclusar na cabana. Ao contrário, ele estava tão envolvido na macropolítica do seu país que foi levado à prisão por um gesto de protesto – e foi preso enquanto ia à cidade consertar seus sapatos, outro ato que marca o seu envolvimento corriqueiro com o outro, que quase acidentalmente termina por representar essa ideia maior de país e das relações econômicas e de convivência que se dão nele.

Em “Batem à porta”, a questão da dualidade é posta nos seguintes termos: um casal de homens e sua filha de 8 anos são feitos de refém em seu próprio chalé na floresta por quatro estranhos de personalidades e histórias distintas que os apelam a fazer uma escolha: sacrificar um deles voluntariamente para salvar a humanidade. A cada momento em que eles se recusam a escolher, uma nova praga é liberada sobre a humanidade, como tsunamis, panes no sistema de viagens aéreas e pandemias. A família sobreviveria a tudo isso caso não aceitasse a tarefa de escolher um sacrifício, mas viveria em um mundo devastado. Para acentuar a urgência da escolha, os estranhos apontam para alguns vestígios da humanidade lá fora: matérias de telejornais que apontam para as consequências de cada uma dessas pragas, relatos de um jovem filho que uma das estranhas quer proteger e a alegação reiterada pelo estranho que comanda toda essa ação de ser um professor de crianças.

“Batem à porta” aciona duas questões recorrentes no cinema de Shyamalan. A primeira e mais evidente, que tem causado uma recepção um pouco mais incomodada pela maneira como ela é literalizada pelo filme, é da fé. A segunda questão é tanto um jogo de cena como um esquema narrativo em que uma comunidade interna é organizada para alegorizar uma ideia de humanidade, enquanto os filmes continuam a nos fazer conscientes de uma humanidade “lá fora”. Isso aparece em “A vila” (2003), “A dama na água” (2006) – os dois em que vejo ser mais brilhantemente executado – e mais recentemente em “Tempo” (2021).

A fim de que o espectador se engaje com seu novo filme – e o cinema de Shyamalan é um que é bastante dependente de um engajamento sensível e moral do seu espectador –, acredito que deve haver uma eficiência na maneira como ele responde a essas duas questões, que são aqui muito radicalizadas, mesmo em comparação a seus outros filmes. Naturalmente, a maneira como cada espectador vai se relacionar com o voto de fé que o filme exige vai variar drasticamente. O que realmente me incomoda, no entanto, é como a segunda questão é elaborada para mim, como espectador, para que eu aceite o voto de fé da primeira.

Os sinais de uma humanidade lá fora que o filme coloca (pelas figuras alegóricas representadas pelos estranhos e o que eles narram e pelas matérias de telejornais, principalmente) são muito frágeis para construir o meu engajamento com o voto de fé requerido para que a moral do filme funcione. São clichês de um apelo ao outro (crianças em risco, tragédias naturais e humanas televisionadas) que o filme coloca em cena de maneira quase protocolar. Em oposição a isso, somos levados a compartilhar de um devir de empatia com a família sequestrada, personagens que são especificamente desenvolvidos com flashbacks que buscam elaborar a relação entre eles e com o mundo, inclusive na maneira como eles vão criando um núcleo de humanidade, afeto, respeito e vida dentro de um mundo que os isola, inclusive em direção a esse núcleo.

Para que o apelo por uma humanidade em risco de fato me afetasse e me levasse em direção a esse voto de fé, era preciso que a humanidade em cena fosse além de generalizações que nunca saem de um lugar comum. E aí se cria um problema. Ora, o que há nesses sinais de um mundo em risco lá fora que se diferencie da maneira como o mundo já aparece em risco corriqueiramente no discurso generalizado sobre a humanidade – na maneira como ela já costuma ser enquadrada, discutida e colocada em cena midiaticamente? Por que deveriam esses três personagens completar um sacrifício que exige deles (em termos do que é colocado em cena para eles) apenas o que o mundo que os isolou sempre exigiu, que eles salvassem uma humanidade hipotética, alegorizada, imaginada em discursos conservadores por desfazerem a sua família? Não digo isso no sentido de sugerir que Shyamalan seja ativo na reiteração de discursos homofóbicos de que a família homoafetiva vai destruir a humanidade, afirmo apenas que a ideia de humanidade que é colocada em cena faz muito pouco para oferecer algo além disso.

Encerro retomando o problema do isolamento contra a integração na sociedade posto pela obra de Thoreau. Por que devemos aceitar que a família de “Batem à porta” se distingue da humanidade que eles devem proteger? Por que a violência que deve ser perpetrada no núcleo do único sinal de humanidade efetivamente apresentado pelo filme – de um conjunto de sujeitos complexos que constituem entre si relações de cuidado e afeto – é aquilo que vai salvar a humanidade no lugar de condená-la? Shyamalan pede que imaginemos essa cabana fora do mundo, mas me encontrei, na relação estabelecida com seus personagens, menos isolado do que o seu jogo de cena me posicionou para estar, talvez consciente de que caminhando um pouco para consertar os nossos sapatos descobriremos todos nós (personagens, espectadores, Shyamalan e Thoreau) não estarmos tão separados assim do outro.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.