Tem música que pega. Tem música que não pega.
Muitos cinquentões cantam até hoje Sapato Velho, da banda Roupa Nova.
Já o Sapato Novo, de Los Hermanos, poucos lembram.
Raul Seixas ainda não era o Maluco Beleza quando gravou Sapato 36, parceria com Claudio Roberto. Nos versos, um jovem rebelde deseja caminhar pelo mundo com seus tênis 37 e o pai conservador insiste com o número menor, sem admitir que o filho cresceu.
Com Daniel o sapato apertou por outro motivo. A crítica da namorada, três anos mais velha e já formada, desabou com a suavidade de uma betoneira sem freio ladeira abaixo.
- Joga fora essa porcaria de sapatênis. Sapato de homem é de couro, com solado duro salto firme e cadarço fino. Você não amadurece.
O namoro já era, a bronca ainda ecoa.
O ex-estagiário, agora formado, para num brechó. Quem manda na vitrine é um sapato preto de bico fino, bem engraxado, couro que não enruga. Firme e ao mesmo tempo confortável, palavra de vendedora. Como costuma acontecer no comércio de usados é peça única.
Daniel pechincha e o desconto sobe para 40% com pagamento em dinheiro ou pix.
Bom, bonito, barato. Só tem um problema: é um número menor. Do calcanhar à unha do dedão, o mesmo sufoco. Os pés 41 não se mexem no modelo 40. Os dedos dobram e quase não esticam mais.
Daniel está mais impactado pelo desconto gordo que pela forma estreita. Confia numa técnica que aprendeu na internet. Encharca folhas e mais folhas de jornal com álcool, faz bolas e enfia uma por uma nos sapatos. Quase acaba com o jornalão de domingo. O álcool dilata o papel e o couro cede, é a teoria da influencer.
O carioca Daniel lembra que no Rio fala-se alargar. Em São Paulo, lacear.
É sábado à noite, Daniel não desiste. Escolhe a meia mais fina que tem e enfia o pé com dificuldade. Adora o visual, porém, reconhece a estupidez. A laceada de milímetros não resolveu nada.
Para dirigir dá. Para jantar na casa de um amigo que tem vaga livre na garagem é suportável. Já dançar, subir e descer escadas ou passear no shopping, nem pensar.
Volta pra quitinete de 26 metros quadrados onde mora sozinho, guarda a dupla de estrupícios na sapateira atrás da porta e prepara um escalda pés.
O mergulho na água morna com sal grosso devolve o movimento aos dedos. Eles mergulham e flutuam. É como se nadassem numa praia de maré mansa. O calcanhar volta a respirar, o peito do pé também submerge. É puro deleite às 2 e meia da madrugada.
Os olhos se fecham e Daniel sonha com o passado.
Quando Raul Seixas cantava Sapato 36, o adolescente Daniel já experimentava botas sob medida com o pai. Ernesto, um sapateiro italiano, tirava os moldes, desenhava a bota e então exigia várias provas. Pai e filho iam de chevette ao bairro do Estácio onde ficava a loja escura, bagunçada e com cheiro forte de couro molhado.
Ernesto usava um alargador, instrumento capaz de ajustar o calçado à largura, altura e tamanho dos pés. Um laceador, diriam os paulistanos.
Depois de uma sequência de testes, as botas de duas cores e fivelas douradas estavam prontas. O pai também encomendava cinto do mesmo estilo, com a fivela larga. Tal qual os do cantor Antônio Marcos, marido de Vanusa.
As botas eram moda nas “discoteques” e em bailes de debutantes. Com o salto, Daniel crescia e sentia-se mais seguro para falar com as meninas e arriscar as primeiras tragadas.
Bem antes disso, naquela época da vida em que um ano é uma eternidade, ele se deu o primeiro presente de aniversário. Comprou um tênis usado de um amigo do prédio. O vizinho já calçava 38 e o tênis de lona vermelho e sem cadarço – última moda – era 36.
Daniel testou e aprovou. Um pouquinho justo, mas cabia. Usava para tudo: escola, rua, festa, futebol. Lavava de noite e secava no sol pra logo calçar. Em dias de chuva, pendurava em frente ao ventilador.
De novo, bom, bonito e barato, ainda mais com o desconto de vinte por cento. Porém, assim como o vizinho, Daniel crescia e em três meses os dedos protestaram. O mindinho saía vermelho como um morango. O maior, roxo que nem ameixa..
Em casa, tirava os tênis e esticava as pernas na janela. O vento chegava carinhoso, refrescava a sola, subia do calcanhar às unhas. Daniel escancarava os dedos pro fresquinho passar.
Pensava lá com seu chulé enquanto os pés comemoravam a liberdade
- Se não fosse o tênis apertado eu não sentiria nada disso. Até que vale a pena umas horas de sufoco por uns instantes de prazer tão intenso.
Mais ou menos como a ducha gelada de dois minutos depois de uma hora jogando futebol; do beijo fugaz na garota amada depois de tantos meses de angústia; do cachorro quente engolido depois de uma tarde inteira com fome.
Claro que valia a pena o sacrifício, prosseguia em seu monólogo já calejado.
Num verão incandescente nasceu outra ideia, que tal descansar os tênis na geladeira por vinte minutos antes de sair?
No momento de calçar, que delícia, que fresquinho. Melhor que Chicabon.
Da mãe, assustada com os estranhos hábitos, ouviu uma história de família.
Vovô João, homem de poucas posses e muita criatividade, apertava o orçamento sem machucar os pezinhos dos filhos. Em vez de comprar sapatos a cada seis meses, investiu numa tesoura poderosa. Quando o aperto começava, ele cortava o bico, preservando a sola. A avó fazia o arremate e os dedinhos gorduchos da menina e do menino saíam livres e alegres, como numa sandália. A dupla desfilava na escola e repetia vaidosa.
- Que fresquinho.
Daniel ri do passado. Tivesse o laceador do sapateiro Ernesto ou a tesoura do vovô João, aí sim, os passos seriam firmes.
É o que pensa enquanto caminha descalço no chão de madeira da quitinete alugada.
**Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.