Houve um tempo, há décadas, em que gostava de fazer uma brincadeira quando chegava a casa de amigos, em São Paulo: ver os discos que tinham. Todos tinham muitos do Chico Buarque, Vandré, Sérgio Ricardo, grupo Tarancón, Mercedes Sosa, Violeta Parra, Elis Regina, Quinteto Violado, Milton Nascimento e outros. Do Milton Nascimento, tinha um especial, cuja capa se abria em forma de um grande caderno e tinha de fora a fora uma foto do público de um show dele na Cidade Universitária de São Paulo. Era esse que me interessava. Centenas e centenas de estudantes apareciam na foto. E em todas as casas, havia um círculo feito à caneta em volta de um rosto, tipo “olha eu aqui”. Todo mundo se identificava na foto, com orgulho. Menos eu. Não por ser diferente dos outros, mas porque estava num lugar mais alto e fiquei fora da área abrangida por ela.
Eu me lembrei disso ao ler o livro “De onde vem essa força – histórias da família Nascimento de Minas para o mundo”, de autoria de uma prima do Milton, Vilma Nascimento, também cantora, e de Jary Cardoso e João Marcos Veiga.
Ganhei o livro de um amigo e ele me matou muitas curiosidades, até curiosidades que antes eu não tinha. E me grudaram na cabeça muitas músicas de Milton e seus parceiros do Clube da Esquina, especialmente “Raça”, de que usaram para o título do livro, e “Maria Maria”, que entendi agora ser homenagem à matriarca da família, Maria mesmo, avó de Milton, nascida num lugarejo do município de Lima Duarte, perto de Juiz de Fora. Nada a ver com o ator Lima Duarte, que adotou esse pseudônimo porque consideravam seu nome inviável para um ator. Realmente, Ariclenes Venâncio Martins fica difícil...
Pensei em mandar estes comentários ao Jary Cardoso, jornalista convidado por Vilma, a prima de Milton, para participar das entrevistas com uma enormidade de gente descendente da (pra mim agora lendária) Vó Maria, mulher cujo marido se limitava a fazer filhos, até que ela se mudou para Juiz de Fora e, com muita garra, muita força, muita graça, deu origem a uma legião de descendentes. Descendentes que tinham sempre o papel preponderante das mulheres, decididas, independentes, inclusive Maria do Carmo, a Carminha (1918-1944), que se mudou pro Rio de Janeiro e lá teve um filho com um namorado irresponsável. Trabalhando nas periferias das grandes cidades conheci muita gente assim: homens que se julgam sem nenhuma responsabilidade pelos filhos que fazem, e mulheres tendo que ser fortes e muito trabalhadoras para criar as crianças. Mas esse irresponsável do Rio deu um presente ao mundo: seu filho Milton Nascimento, desde criança apelidado Bituca.
Eu tinha curiosidade sobre esse apelido. Bituca, em muitos lugares, é toco de cigarro. Pensava que tinha algo a ver. Mas não. Uma versão é que a patroa da sua mãe (que era empregada doméstica) lhe deu o apelido por causa do personagem Pinduca, de gibis. Outra, que parece ser a mais real, era por causa do bico que ele fazia quando era contrariado.
Bom, o certo, é que a família da dona da pensão gostava muito da mãe dele, Carminha, e dele próprio. Amavam o menino. Todo mundo o considerava encantador. Quando a mãe morreu de tuberculose (depois de morar uns tempos num barraco muito ruim com o namorado), depois de idas e vindas, uma temporada do menino em Juiz de Fora, acabou adotado por familiares da ex-patroa da mãe, Lília e Josino. Uma adoção de verdade, amorosa. E foram morar em Três Pontas, no Sul de Minas. Tenho uma admiração enorme por pessoas como esse casal.
Mas Juiz de Fora continuou sendo o epicentro da família. Aliás, Milton tem o título de cidadão honorário de lá.
Agora, com a notícia de um show de Paul McCartney em Belo Horizonte, em que Milton Nascimento compareceu como convidado especial, mas não cantou (acredito que o público esperava que cantasse), vi, aqui no portal da Fórum, um artigo do Julinho Bittencourt em que ele diz: “Milton Nascimento é tão grande quanto Paul McCartney, mas é da América do Sul”. Isso remete à música dele “Para Lennon e McCartney”, que começa com verso “Eu sou da América do Sul”. Belíssima música que parece um protesto aos admirados Beatles que nem sabiam que tinham fã por aqui. Bom... Concordo com Julinho Bittencourt, mas vou além, quanto à grandeza dele: eu gosto muito mais do Milton. No tempo dos Beatles, eu não dava muita bola para eles, tinha muita música boa no Brasil pra eu ouvir. Hoje gosto deles, mas continuo preferindo o Milton.
E sobre o início deste artigo, lembro que o Jornal da Tarde tinha a melhor cobertura cultural de São Paulo, incluindo os melhores críticos, e depois de um show de Milton Nascimento aqui, acho que esse mesmo da Cidade Universitária, um desses críticos escreveu no jornal um artigo em que reconhecia a beleza das suas músicas, mas se espantava com o quase delírio dos jovens que as ouviam, porque, segundo dizia, as letras lhe pareciam incompreensíveis, herméticas. Se esse livro já existisse naquela época e ele tivesse lido, entenderia muito bem. A vida dos Nascimento está nelas.
Para terminar, lembro uma coisa que não tem muito a ver com isso, só o prazer de ter conhecido Milton Nascimento e conversado rapidamente com ele. Foi num evento num museu dedicado à cultura indígena, na periferia de São Paulo, acho que no início dos anos 1980. Contei a ele que anos antes, passando pela cidade de São Vicente de Minas, um amigo e eu discutimos sobre a música dele que começa com “Estava em São Vicente...”. Um de nós achava que se referia àquela cidade, outro acreditava que era à ilha do Caribe. E o Milton me tirou a dúvida de modo surpreendente: “Nenhuma das duas, é uma cidade imaginária”.
Agora termino mesmo... Mas quem quiser dar uma olhadinha num causo que contei no Brasil de Fato há alguns anos, aí vai ele.
Baile de formatura
Ando me lembrando dos bailes de formatura. Era um acontecimento importante na vida da gente, e divertido. Exigia também que a gente aprendesse a dançar valsa, pois tinha o momento em que todos os formandos e suas madrinhas de formatura tinham que dançar solenemente a dita-cuja, que geralmente era “Danúbio Azul”, “Valsa do Imperador”, ou alguma outra vienense.
A formatura não era necessariamente de cursos universitários. Eu me lembro mais era de formação do curso colegial. Eu mesmo encarei a obrigação de dançar uma valsa quando me formei como técnico em contabilidade. Em São Paulo alugavam salões chiques para formandos realizarem o tal baile. E havia orquestras famosas, que tinham como principal fonte de renda tocar nesses bailes nos meses de dezembro e janeiro, sempre aos sábados.
Na minha terra, Nova Resende, em Minas Gerais, onde nem tinha curso colegial, faziam baile de formatura do curso ginasial, equivalente ao primeiro grau de hoje. Os formandos tinham 14 ou 15 anos, mas o tom solene era o mesmo. Morando em São Paulo, fui passar um final de ano em Nova Resende, em meados dos anos 1960, e coincidiu de ter um baile de formatura do ginásio.
Nessa época esses bailes já não eram com orquestras, e sim com conjuntos de meia dúzia de músicos e um crooner, quer dizer, um cantor. Fui lá, de terno e gravata, como se exigia, pensando em tirar umas mocinhas bonitinhas pra dançar de rosto colado e cochichando nos seus ouvidos. O conjunto que tocava nessa noite era da região. O crooner era um jovem negro que cantava maravilhosamente. Tão maravilhosamente que eu parei de dançar e fiquei só vendo e ouvindo as suas interpretações.
Um amigo me viu assim e falou:
? Tanta moça bonita aqui e você aí parado...
Respondi:
? Repare no cantor. Como canta bem! Se morasse em São Paulo ou no Rio, se tornaria um cantor famoso, mas aqui... vai ficar nisso, cantando em bailes de formatura de ginásio.
Passado um tempo, em 1967, a TV Globo promoveu um festival da canção e uma semifinal foi em Ouro Preto. Aí, para cantar uma música concorrente, entrou um rapazinho negro. E ele foi para a final, com uma interpretação maravilhosa. Era Milton Nascimento, aquele que cantou num baile de formatura em Nova Resende, cantando a música “Travessia”.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum