Terra e Paixão: bicha louca, travesti empoderada e machos em crise
Atual novela das 21h, que acaba de entrar em sua etapa final, traz avanços às questões de sexualidade no produto mais popular da TV brasileira
No ar há mais de cinco meses, a atual novela das 21h, "Terra e Paixão", de Walcyr Carrasco, que acaba de entrar em sua etapa final, avança em uma série de questões referentes às sexualidades e gênero presentes nos folhetins noturnos, o produto mais popular da Rede Globo e da televisão brasileira como um todo.
Um dos grandes acertos de "Terra e Paixão" é o fato de Walcyr Carrasco trabalhar com apenas dois núcleos: a disputa por terra entre o fazendeiro Antônio La Selva (Tony Ramos) e a agricultora familiar Aline (Bárbara Reis); e o bar da dona Cândida (Susana Vieira), local onde todos os personagens da trama se encontram e vão afogar as mágoas.
"Eu sou macho"
A expressão "eu sou macho" é uma das mais utilizadas pelos personagens "masculinos" e "heterossexuais" de "Terra e Paixão", principalmente por Ramiro (Amaury Lorenzo), jagunço que faz todos os serviços sujos de Antônio La Selva, mas que vive uma paixão por Kelvin (Diego Martins), que é garçom no bar da Cândida e performa a bicha louca e libertária.
A trama de Ramiro e Kelvin é o ponto alto de "Terra e Paixão", e não por uma escolha do jornalista que escreve este texto, mas pelo fato de que a história do casal roubou a cena e caiu no gosto da audiência. De personagens marginais, tornaram-se centrais no entorno do universo dos dois protagonistas: Antônio La Selva e Aline.
Além disso, o roteiro da novela tem sabido aproveitar muito bem o conflito sexual que Ramiro vive, que é bem clássico: homem que performa uma super virilidade, mas se depara atraído por outros homens e acredita que, ao se entregar a uma relação homossexual, irá perder toda a sua virilidade. Parece risível, mas é algo ainda muito presente na vida dos homens.
Em vários momentos, Ramiro fala tanto para Kelvin quanto para a terapeuta – que a vida toda lhe ensinaram que "é errado" gostar de outros homens – que “não é coisa de macho”. Daí a importância de discursos que quebrem as teses de uma suposta "natureza do homem" ou "heterossexualidade masculina e viril". Ela não existe e não passa de um projeto político, mas que causa danos em homens que performam virilidade e se sentem atraídos por outros homens.
Além da questão da homossexualidade de Ramiro, o jagunço que faz tudo para Antônio La Selva, "Terra e Paixão" traz um mundo de "homens machos" que vivem em crise e ainda acreditam que "obedecer" a mulheres os rebaixa e os torna “menos machos”.
Dessa maneira, a trama trabalha com vários "choques de gênero", digamos assim, em que mulheres empoderadas do campo não baixam a cabeça para homens acostumados a matar quem não obedece.
Para além de toda a caricatura trabalhada em tela, "Terra e Paixão" consegue sintetizar com tais representações um mundo que quer se transformar, mas que se encontra justamente em confronto com tudo o que há de mais arcaico em termos de poder político, gênero e sexualidade.
Luana, a travesti que habla
Além de trazer a viadagem libertária de Kelvin, "Terra e Paixão" avança na composição de sua personagem travesti, Luana (Valéria Barcellos), gerente do bar da dona Cândida e verdadeira herdeira do recinto deixado pela antiga proprietária, que faleceu no início da trama.
Com uma enorme potência, Luana é uma personagem imensa e que, sempre que entra em cena, se destaca com o seu perfeito jogo de corpo e atuação. Mas também, e principalmente, pelo seu texto político.
Luana, Kelvin e Ramiro são três alegorias muito bem construídas pelo roteiro de “Terra e Paixão” e simbolizam um país que vive entre o abandono de valores fundamentalistas e que mata as diferenças e a entrada por completo em um território que saiba lidar com as diferenças sociais e sexuais. Há uma guerra em curso e ela não diz respeito apenas à terra.
Nesse sentido, o fato de as histórias de Luana, Kelvin e Ramiro se passarem no contexto do campo em conflito armado torna ainda mais relevante a reflexão em torno dos paradoxos em que a agenda dos direitos humanos, direito à terra, gênero e sexualidade se encontra, pois, ao contrário do que as teses tradicionais pregam, tudo está conectado, e o texto de ‘Terra e Paixão” sabe fazer essa mistura.