Nos últimos dias, os comentários dos jornalistas Jorge Pontual na Globo News e Renata Lo Prete no Jornal da Globo estiveram no centro do debate sobre a cobertura jornalística do genocídio em curso na Palestina nas redes sociais.
No caso de Pontual, o novo Alexandre Garcia da Globo, o repúdio foi praticamente unânime. No caso de Lo Prete, que busca se apresentar como jornalista da ala “liberal” da Globo, as opiniões dividiram-se, com apoios que considerei até surpreendentes a ela.
Vamos olhar cada caso e fazer um exercício.
O caso Pontual
Creio que a imensa maioria dos que lerem este breve artigo já conhecem do que se trata. Durante o programa “Em Pauta”, da GloboNews, na noite de 13 de outubro, Jorge Pontual apoiou os ataques israelenses a ambulâncias e hospitais em Gaza: "atacar terroristas do Hamas é um direito que Israel tem. Se eles estavam em uma ambulância, infelizmente era isso que Israel tinha que fazer: alvejar esses seus inimigos".
Pontual é o porta-voz na Globo desse encontro entre a extrema direita e o sionismo. Dias antes do comentário sobre o ataque às ambulâncias, ele deu curso à maior mentira da campanha de extermínio israelense até agora, a de que o Hamas teria decapitado 40 bebês. Foi grotesco: “Horror de todos, não só americanos e israelenses, diante dessa monstruosidade que o Hamas fez em Israel: é pior que terrorismo você decapitar bebês". Nem as Forças Armadas de Israel sustentaram a fake news.
Voltemos às ambulâncias. Vamos trocar “terroristas do Hamas” e “inimigos” por “traficantes” e “favela”?
A frase de Pontual:
”Atacar terroristas do Hamas é um direito que Israel tem. Se eles estavam em uma ambulância, infelizmente era isso que Israel tinha que fazer: alvejar esses seus inimigos".
Vamos aplicar a frase à situação brasileira:
“Atacar traficantes nas favelas é um direito que a PM do Rio tem. Se eles estão num barraco, infelizmente é isso que a PM tem que fazer: alvejar seus inimigos”.
Ou seja, pela “lei de Pontual”, a PM do Rio tem direito de metralhar barracos nas favelas do Rio porque lá tem “terroristas-traficantes”.
Diante do repúdio generalizado, Pontual soltou uma nota em seu perfil no Instagram, a título de explicação: "Ao comentar o ataque a uma ambulância na Faixa de Gaza, minha intenção foi a de dar a versão de Israel. Admito que não fui feliz, pois a muitos pareceu um endosso. Isso seria impossível, ninguém tem informações seguras sobre o que lá se passa.” A nota é tão mentirosa quanto a afirmação inicial: não, ele não quis dar a “versão de Israel”; ele defendeu de maneira enfática o “direito” de Israel de atacar ambulâncias.
Veja o comentário de Pontual:
O caso Lo Prete
O comentário de Renata Lo Prete, travestido de “reportagem isenta” no Jornal da Globo de 3 de novembro, não causou repúdio generalizado. Colegas da mídia conservadora e alguns intelectuais saíram em defesa dela. Surpreendentemente, até o advogado Thiago Amparo, uma referência em direitos humanos, deu suporte a ela e qualificou o comentário de “cobertura jornalística precisa”.
Chegaremos ao tema Palestina-Favela. Mas, antes, passemos sobre a qualidade jornalística do que Lo Prete apresentou no Jornal da Globo.
Ela qualifica a ação de 7 de outubro como “ataques bárbaros cometidos pelo Hamas” e, na sequência, acrescenta, ao apresentar o número de palestinos mortos: “e a gente vê aqui, pouco mais de 9 mil palestinos desde então, ao longo do conflito”.
É um escândalo do ponto de vista da técnica jornalística:
De um lado, “ataques bárbaros cometidos pelos Hamas”;
De outro, uma frase sem sujeito e sem qualquer adjetivo: “e a gente vê aqui, pouco mais de 9 mil palestinos desde então, ao longo do conflito”.
Quem matou os palestinos? Lo Prete não informa. Do que eles morreram? Lo Prete não informa. Com qual adjetivo se pode qualificar as ações contras os palestino? Nenhum.
Há um lado “bárbaro”; há outro tão neutro que sequer aparece na frase como sujeito ou merece qualificação.
Se isso é “cobertura jornalística precisa”, tenho medo de alguns pareceres jurídicos.
Creio que só isso já seria suficiente para que o comentário de Lo Prete, travestido de reportagem, merecesse condenações. Mas o pior veio depois.
A título de “explicar” o “perfil etário” diferente do de outras guerras, Lo Prete emenda -40% das mortes em Gaza são de crianças palestinas. A causa, segundo a “lei Lo Prete”: “Porque tantas crianças mortas? Um fato estrutural é a demografia especialmente jovem na Faixa de Gaza (...) A pirâmide etária é assim por força de uma taxa de natalidade elevada em si e também na comparação com outros países do Oriente Médio, 3,9 filhos por mulher em média”. O argumento, com ares de “investigação jornalística”, é tosco e não explica nada, apenas alimenta o preconceito contra as palestinas e os palestinos.
Ainda antes do tema Palestina-Favela, vale a pena um olhar para a análise do professor Gabriel Feltran, do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos e diretor científico do Centro de Estudos da Metrópole (CEM). Ele foi professor visitante na Humboldt University (Alemanha), no Ciesas Golfo (México) e na Sciences Po de Paris (França).
O que diz Feltran sobre a “lei Lo Prete”?
A lei de Lo Prete diz que num conflito armado, devem morrer mais crianças num país com mais crianças. Feltran desmonta a tese: “Parece lógico, mas é falso”. Segundo esta tese, “o Brasil, a redução proporcional de jovens na população causaria redução de homicídios de jovens”. Falso.
Feltran vai ao coração da questão: “essa explicação estrutural faz sumirem os atores do conflito armado. A intencionalidade e ação estratégica do ator. E, como sabemos, conflito armado é o lugar por excelência da estratégia. Mísseis têm GPS. As guerras podem ser cirúrgicas, pelo menos desde os anos 90”. E faz uma relação com o cenário de nossa região e a guerra entre Rússi e Ucrânia: “No conflito armado latino-americano, morrem quase sempre os mesmos sujeitos: na grande maioria homens, jovens, pobres, negros ou indígenas, operadores baixos do conflito armado em mercados ilegais. Na Ucrânia e Rússia, morrem sobretudo soldados. Não uma amostra da população”.
Não foi à toa que Lo Prete escondeu o sujeito da frase sobre quem mata palestinos, Israel - lembre, ela disse que “a gente vê aqui, pouco mais de 9 mil palestinos desde então, ao longo do conflito”. Feltran desenha: “Portanto, é preciso saber que nesse conflito, os mandantes da guerra em Israel estão matando crianças intencionalmente. Estrategicamente. Não à toa cogitaram arma nuclear. A estratégia terrorista - desde antes do 11/9 e para depois do ataque do Hamas - é atacar civis”. É disso que se trata.
E quanto ao tema Palestina-Favela?
Pois bem. Nas favelas do Rio, a taxa de natalidade é maior que no asfalto, nos bairros de classe média e de ricos.
Os dados disponíveis do Brasil são ainda de 2000, estamos no aguardo das informações referentes ao censo 2022/23. De qualquer forma, os números em 2000 eram de 2,6 filhos por mulher em idade fecunda nas favelas do Rio contra 1,7% na “cidade” ou no “asfalto”. Segundo o demógrafo José Eustáquio Diniz Alves, ambos os números deverão apresentar redução quando saírem os dados do novo censo.
Pois bem. Segundo dados do Instituto Fogo Cruzado, 103 crianças foram baleadas, entre elas bebês, e 30 morreram vítimas da violência no Rio de Janeiro nos últimos cinco anos. A maioria dos casos – 64 crianças – aconteceu dentro das favelas.
Deveríamos aplicar a “Lei Lo Prete” ao caso do Rio de Janeiro?
Imaginemos um comentário (apresentado como se reportagem fosse) com o seguinte texto. Ele é a quase exata tradução do comentário dela sobre a Palestina:
“Porque tantas crianças mortas? Um fato estrutural é a demografia especialmente jovem nas favelas do Rio (...) A pirâmide etária é assim por força de uma taxa de natalidade elevada em si e também na comparação com outras regiões da cidade, 2,6 filhos por mulher em média, enquanto a média no restante da cidade é de apenas 1,7”.
Seria aceitável? Thiago Amparo defenderia a “cobertura jornalística precisa”? Jornalistas das mídias liberais e de direita sairiam em defesa da “reportagem”?
Veja o comentário de Lo Prete: