Nessa série de artigos que estamos fazendo sobre a história do piso salarial do magistério, já fomos ao Brasil do Império de Dom Pedro II e ao Brasil da nossa segunda República, com o Manifesto dos Pioneiros de 1932. Nesse terceiro artigo, após às comemorações da proclamação de nossa República, deixamos um pouco o Brasil para entender como essa ideia de um salário digno para os/as professores/as reverbera no mundo, para além das nossas fronteiras.
Desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotado pela Organização das Nações Unidas (ONU) ainda no ano de 1948, quando o mundo inteiro estava assolado com os desdobramentos da 2ª Guerra Mundial, a educação entra na pauta global. “Toda pessoa tem direito à educação”, conclamava o texto adotado pela maioria expressiva dos países do mundo! Naquele contexto do pós-guerra, com a Europa em ruínas, o mundo experimentou, logo depois do estado de terra arrasada deixado pela guerra, um boom de crescimento econômico na maioria dos países. Foi um período que, considerado a “época de ouro” do capitalismo, recolocou os direitos sociais na agenda governamental dos países centrais do capitalismo industrial. O enfrentamento à crise provocada pela 2ª Guerra se deu com o fortalecimento do Estado e sua retomada como agente de fomento das políticas sociais e de direitos para a igualdade. O Estado de Bem Estar Social se fortalece, assim, nesse período, tendo, dentre outros, a educação assumida como direito social inalienável da humanidade.
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Foi dessa forma que, logo depois da adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos, os organismos do Sistema ONU passaram a ser grandes formuladores desse novo ideário social global que apontava para a ampliação e garantia de direitos sociais. Tanto a Organização Internacional do Trabalho (OIT) quanto a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), ambas as agências vinculadas à ONU e essa última constituída formalmente no esteio do fim da guerra, em 1945, passam a preconizar o direito à educação como valor universal para a construção da paz mundial. E em 1966, essas duas agências especializadas da ONU, uma voltada à temática laboral e a outras às questões mais específicas do campo educacional, propuseram um documento que terminou por virar um marco importante em relação ao trabalho docente.
A Recomendação Conjunta Relativa à Condição Docente, amplo documento elaborado em 1966 por um comitê internacional da UNESCO/OIT, se constituiu no principal marco legal de referência para tratar os direitos e as responsabilidades dos/as professores/as e, em geral, dos/as educadores/as. Esse documento conjunto, de 146 parágrafos distribuídos em 13 seções, aborda um conjunto importante de questões relacionadas ao exercício do trabalho docente de nível primário e secundário que, no Brasil de hoje, abarca os/as trabalhadores/as do magistério da educação básica, seja pública ou privada. Temas como formação inicial e permanente, contratação e perspectivas de carreira, a liberdade e a autonomia de cátedra, as condições objetivas e materiais para uma boa aprendizagem, as negociações e o papel dos sindicatos, além de outros tantos assuntos, estão presentes nesse documento.
Trata-se mesmo de um precioso material que tem como objetivo abarcar direitos e deveres da profissão docente, um verdadeiro e precursor instrumento de normatização da profissão. Como se refere a uma recomendação, um guia aos países, ela não tem força de lei e, por isso, não se impõe como obrigações às legislações dos países. No Brasil, por exemplo, quando essa Recomendação conjunta da OIT e da UNESCO foi construída, o Brasil vivia o período da Ditadura Militar que se abateu no país de 1964 a 1985. Pouca coisa foi incorporada por nós. E não seria demais dizer que se trata de um instrumento atualíssimo, até nos dias de hoje, pelos temas levantados.
Talvez seja uma dessas documentações históricas das mais desconhecidas, apesar de indicações importantes feitas ali. Foi a primeira formulação a indicar, por exemplo, a conexão entre o emprego do professor e suas condições objetivas de trabalho, articulando a qualidade de ensino com as políticas educacionais mais gerais. Na parte que cabe à participação das entidades representativas dos/as docentes, o papel das organizações dos/as professores/as assume uma centralidade pouco usual naqueles tempos: as organizações docentes devem negociar com os empregadores os salários e as condições de trabalho daqueles que representam. E aqui, nesse caso, ganha uma atualidade impressionante quando o Brasil, agora em 2023, discute a regulamentação da negociação coletiva no âmbito do serviço público, na forma da Convenção 151 da OIT.
O documento conjunto da OIT/UNESCO de 1966 não fala de piso salarial, mas quase insinua: “Os docentes deverão ser remunerados com base em uma escala de salários estabelecida de acordo com as organizações sindicais”, diz em um de seus parágrafos, mostrando como continua sendo uma formulação instigante porque, sobretudo, atual depois de quase 60 anos.
Semana que vem, depois desse passeio por essa recomendação global, voltamos ao Brasil para falar do Pacto pela Educação de 1994 e suas indicações para a constituição de um piso salarial nacional para as professoras e professores em nosso país. Até lá!