OPINIÃO

Na contramão da Reação

O semáforo avermelhou e parei na esquina da rua Alvarenga com a Reação. Passou andando pela faixa, em direção ao metrô Butantã, um homem magro, de cabelos esvoaçantes, barba grisalha e nariz adunco.

Luiz Tatit.Créditos: Divulgação
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Foi num dia útil, próximo ao meio-dia, indo buscar a filha na escola. O semáforo avermelhou e parei na esquina da rua Alvarenga com a Reação. Passou andando pela faixa, em direção ao metrô Butantã, um homem magro, de cabelos esvoaçantes, barba grisalha e nariz adunco. Vestia uma espécie de sobretudo negro que se contorcia ao sabor do vento. Não tive dúvidas: era Luiz Tatit.

Para os que não o conhecem, Tatit é o cantautor de muitas das músicas do grupo Rumo e de álbuns solo. Ele foi também o compositor que incorporou, para valer, o canto falado à MPB.

Canto falado é uma técnica que permitiu incorporar elementos da fala cotidiana e da linguagem oral nas composições. Isso muitas vezes resultava em peças que exploravam o ritmo, a entonação e a prosódia da fala humana, criando sonoridades e texturas musicais. Um exemplo é a obra Pierrot Lunaire, de Arnold Schoenberg, que utiliza o Sprechstimme, um processo de canto falado, para transmitir uma atmosfera expressionista.

Pois ele estava ali bem na minha frente. Naquele átimo, me lembrei de uma vez, pelos idos de 1986, quando fui à sua casa, a poucos metros daquela faixa de pedestres, numa ruazinha na lateral da rodovia Raposo Tavares.

Apareci lá timidamente levando uma letra que fizera para um personagem da novela Cambalacho, da Rede Globo. Ela havia sido aprovada pelo diretor musical, Zé Rodrix, e agora faltava alguém para vesti-la. Foi-me dada a incumbência de achar o parceiro da empreitada. O primeiro que busquei foi Tatit. Pela minha admiração por suas ideias, naturalmente.

Dias depois, meus versos sobre um despachante safo e golpista (vivido pelo ator Gianfrancesco Guarnieri) viraram um incrível Sprechstimme brasuca. Fiquei encantado com o resultado, mas Zé Rodrix considerou a proposta ousada demais para os receptores da soap opera global.

Após tentar uma parceria com Heraldo do Monte, que, para Rodrix, ficara linda, porém “um pouco nordestina” para o espírito paulistano da trama, acabei fechando a canção com as notas de Eduardo Gudin.

Fiquei feliz com Jerônimo em ritmo de samba de São Paulo. No entanto, restou o desejo de algum dia ainda ter outra letra trajada por Luiz Tatit.

Devaneava com tais histórias quando o semáforo esverdeou e tive que ir em direção à escola da filha. O compositor, em sua negra indumentária, foi indo na contramão da Reação. Como, aliás, sempre fez em sua vida profissional. Restou-me sair dali assobiando Rodopio.