A novela "Terra e Paixão" apresenta vários acertos em sua abordagem das múltiplas formas de expressar a masculinidade. O texto de Walcyr Carrasco tem se destacado ao desenvolver a história de Ramiro (Amaury Lorenzo), um "macho tradicional" e jagunço do vilão da trama, Antônio La Selva (Tony Ramos), que se apaixona por Kelvin (Diego Martins), um homem gay que trabalha no Bar da Dona Cândida e enfrenta uma crise em relação à sua masculinidade.
No entanto, foi com certo estupor que recebemos a notícia de que a história de Menah (Camila Damião) e Mara (Renata Gaspar) foi descontinuada. A informação foi revelada por uma das atrizes em suas redes sociais, a saber, Renata Gaspar.
Te podría interesar
Amores, Mara e Menah não terão mais trama na novela.
— Renata Gaspar (@RenataGaspa) November 20, 2023
Acho que quando tudo acabar falaremos mais do que passamos. Mas é isso, viramos as tias, que ficam de fundo na festa e ninguém pergunta sobre sua história pois não querem saber. “É aquela tia que vive com a amiga dela”
O estupor diante do cancelamento da trama de Menah e Mara se dá pelo fato de que a história do casal vinha sendo desenvolvida de maneira excelente desde o início de "Terra e Paixão".
De maneira delicada, o texto do folhetim trazia à tona a história de duas mulheres que vivem em uma sociedade completamente machista e que enfrentam conflitos, mas que, mesmo assim, estavam prestes a assumir a relação. No entanto, de maneira abrupta, elas desapareceram da história. O método de "matar as personagens" foi utilizado.
Assim como na vida fora das telas, Menah e Mara voltaram aos seus respectivos lugares, ou seja, à completa marginalidade e, daqui para frente, aparentemente, sem qualquer utilidade para a trama. Se entrarem em cena, será apenas para servirem de apoio a todos os personagens heterossexuais de "Terra e Paixão". Ou, como bem colocou a atriz Renata Gaspar, "as duas tias amigas que moram juntas".
Globo e o retrocesso na abordagem LGBT+
Ao optar pela censura à trama de Menah e Mara, a Rede Globo coloca abaixo todo o seu discurso sobre "diversidade", que se faz presente em uma série de esquetes da emissora. Não que seja alguma novidade, mas até para fazer uso do pink money é preciso um pouco de ética.
Além disso, também confirma a crítica: só vale ficar em evidência se for profundamente caricato ou de menor importância. E olha que a mesma "Terra e Paixão" possui uma personagem trans, Luana, interpretada de forma magistral por Valéria Barcellos.
O que leva, então, a emissora optar pelo veto à trama de Mara e Menah? Há duas hipóteses: o bom e velho machismo somado a uma profunda lesbofobia.
Mas o cancelamento da história de Mara e Menah choca ainda mais quando lembramos das cenas em que Menah conversa com o pai e com o irmão, que aceitam a sua relação com outra mulher e lhe desejam toda a sorte da vida. Tudo isso foi para o lixo.
A coisa piora quando olhamos para o trabalho de Walcyr Carrasco, responsável pelo primeiro beijo entre dois homens na novela "Amor à Vida" (2013) e pelo desbunde total de "Amores Secretos" 1 e 2. O que houve?
Na contramão da indústria cultural
A decisão da Globo em censurar a história de Mara e Menah também vai totalmente na contramão da indústria cultural, que percebeu nos últimos anos que há uma grande parcela da população ávida em consumir histórias LGBT+. Mas, parece que para a emissora em questão, até mesmo para ganhar dinheiro há limite. A isso chamamos de heteronormatividade: essa estrutura coloca um teto para tais abordagens, principalmente quando pensamos na TV aberta.
Porém, a dicotomia TV Aberta x TV a cabo já não faz tanto sentido assim, visto que hoje vivemos na era dos streamings onde, inclusive, telenovelas são consumidas pelos computadores, celulares e tablets, independentemente do calendário dos canais de TV.
Não faz o menor sentido a decisão da emissora quando, recentemente, duas séries e um filme LGBT+ voltados ao público jovem se tornaram fenômenos de audiência: as séries "Heartstopper" e "Young Royals", ambas da Netflix, e o filme "Vermelho, Branco e Sangue Azul", da Prime Video. Mas também podemos citar algumas produções recentes da Globoplay: "As Five", "Verdades Secretas 2" e "A Vida Pela Frente".
Portanto, diante de todo esse contexto, só nos resta o caminho da lesbofobia e do machismo para compreender o veto à história de Mara e Menah, que tinha conquistado o público e tinha tudo para ter uma grande conclusão. Mas, agora, as duas ficarão escondidas ao fundo... na verdade, tal decisão pode significar o desejo de muita gente atuante na indústria cultural: que as pessoas LGBT permaneçam longe das vistas do grande público, assim, quando morrerem, nem do luto serão dignas.