Rio de Janeiro, 23 de outubro de 2023
Querido filho,
Há sempre duas opções de encontro. Você pode buscar os iguais para viver as mesmas experiências eternamente, numa repetição confortável de seus gostos e prazeres. Ou pode buscar os complementares, que apresentarão novos gostos, ampliando o horizonte dos sonhos, e com quem será possível dividir suas experiências anteriores para torná-las um caminho também para o outro. É nessa troca que está a evolução.
Não fique estagnado, não se acomode e faça yoga todas as manhãs. Até na contemplação da natureza há mudança. Os ensinamentos de Heráclito sobre as águas do rio valem até hoje. Olhe de novo. O rio passou. Contemple novamente. A flor tem outra cor.
Ontem, a Argentina nos deu uma lição, meu filho. Todos apostavam na repetição dos erros do Brasil, numa espiral de retrocesso que poderia levar o país a seu último tango. O candidato protofascista aparecia à frente nas pesquisas, mas a urna não seguiu a onda, não apertou a mão do hábito, não deu o beijo na testa da acomodação.
Na última hora, os argentinos ouviram a voz da razão, ouviram os sindicatos e ouviram a massa, sem trocadilhos. Não era o candidato perfeito, não tinha o sangue peronista, não encarnava os ideais de milhões que pedem justiça social e redistribuição de renda. Mas era o candidato viável, com capacidade de mobilização, com chance de vitória, com vontade de refazer a trilha sem largar a mão, ainda que corra o risco de escorregar e cair. Em resumo, o candidato de uma transformação. Uma transformação para complementar, não para repetir. Um encontro entre o eleitor e seu futuro.
Quando os historiadores escreverem sobre este período, tudo parecerá ficção. Quem acreditará que um sujeito com motosserra na mão cujo conselheiro é um cachorro morto que fala através de um médium quase chegou à presidência? Quem acreditará que os argentinos quase elegeram uma peruca rebelde com costeletas? Quem acreditará que as propostas de acabar com os ministérios da saúde e educação quase foram aceitas?
Tudo isso parece surreal agora, meu filho. Mas era o que muitos viam como natural, sem questionamentos. A repetição do pesadelo brasileiro bateu na porta dos vizinhos, mas como nos melhores textos do teatro portenho, alguém meteu um caco na fala do protagonista. Um caco de apenas duas palavras. Duas palavras rígidas, pontuais, definitivas. Duas palavras complementares. Duas palavras destinadas a entrar no meio do espetáculo e serem entoadas pela plateia. Apenas duas palavras: no pasarán!
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.