CARTA

Cartas para Ernesto – volume 1 – Por Felipe Pena

Antes de teu nascimento, filho, minhas cartas eram para tua irmã, a irmã que não nasceu. E elas também pediam perdão. Eram tempos temerosos e havíamos acabado de sofrer um golpe

Créditos: UN Photo/Shareef Sarhan via Flickr
Escrito en OPINIÃO el

Rio de Janeiro, 17 de outubro de 2023

Querido filho,

Perdoe o pai insone que se levanta na madrugada para ver o canal de notícias. Perdoe o pai triste, indignado. Perdoe o pai que escreve em um dia tão trágico. Estamos em guerras, no plural, e hoje bombardearam médicos, enfermeiros e pacientes de um hospital em Gaza. Logo hoje, meu filho, um dia depois de tua consulta para tratar da asma recém-diagnosticada. Um míssel invade a garganta ao perceber que outros pais não tiveram a mesma sorte. Centenas de crianças morreram no ataque covarde de quem pretende combater o terrorismo promovendo terrorismo. Crianças da tua idade, com o teu jeito, tua face. Crianças que tinham pais. Crianças.

Antes de teu nascimento, filho, minhas cartas eram para tua irmã, a irmã que não nasceu. E elas também pediam perdão. Eram tempos temerosos e havíamos acabado de sofrer um golpe. Fascistas tomaram o poder e trouxeram a volta do ódio, da misoginia, da homofobia, do racismo e de outras mazelas que pareciam erradicadas pela história. Hoje, no entanto, esses mesmos fascistas foram indiciados por uma comissão parlamentar de inquérito e vão responder por tentativa de golpe de estado, formação de quadrilha e outros crimes. Ainda assim, é um dia triste. E nem a prisão do líder desses canalhas apagará o sofrimento de hoje.

Perdoe o pai angustiado, Ernesto. Eu queria encostar a cabeça no travesseiro de espuma da Nasa, mas a insônia insiste em me lembrar a natureza do fabricante. Eu queria ouvir as gargalhadas gratuitas, mas há um choro incontido a romper o dique da memória. Eu queria ver o grafitte do Bansky no muro, mas só ficaram os escombros. Gaza não é a Ucrânia e o cenário não tem cor, apenas cinza e poeira.

Perdoe-me, meu filho. Na próxima carta tentarei amenizar o tom e trazer mais esperança. Pra finalizar, deixo alguns dos conselhos endereçados à tua irmã. São apenas recomendações:

Se o mundo disser que está errado, não acredite, mas desconfie. E quando a desconfiança te fizer mudar de ideia, desconfie da própria mudança. O nome disso é instinto.

Instinto e razão podem parecer opostos, mas são apenas complementares. Use-os em combinação e com intensidade. O nome disso é inteligência.

Inteligência não é sinônimo de superioridade. Inteligência é compartilhamento, é solidariedade, é empatia. Inteligência tem vários nomes, mas o sobrenome é sempre emoção.

Emoção é o que mais desejo para os teus dias. Sorrisos e prantos são igualmente bem-vindos. Não economize. As risadas serão efêmeras. As lágrimas serão perenes. Essa desproporção é o que nos torna humanos.

Humanidade e humildade não são aliterações por acaso. Aprenda outros idiomas e descobrirá a mesma relação, mas jamais acredite que o aprendizado terminou. O segredo é não parar de aprender.

Haverá amores e paixões. Difícil separá-los. Mas será mais fácil se souber que nos apaixonamos pelas qualidades e amamos apesar dos defeitos. Nunca evite uma paixão.

Amar sempre. Temer jamais. Esse deve ser o lema da tua geração. A minha não soube segui-lo.

Se tiver muitos amigos, ótimo. Mas se tiver dois ou três, melhor ainda. São eles que vão suportar tuas angústias, lavar as feridas e comprar a aspirina.

A aspirina e o engov também serão teus amigos. Nunca te esqueças disso.

Por último, Ernesto, evite mágoas e rancores e, se possível, não repita os erros do velho que não cumpriu as próprias recomendações.

Pai é aquele que cria.

Se eu não estiver por aqui, aceite o que está ao teu lado e não conte que escrevi esta carta. Ele pode se magoar.

O amor, Ernesto, não tem forma.

Mas essa foi a forma que encontrei.

Bem-vindo ao mundo.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.