Aftersun (dir. Charlotte Wells) é um filme em dois tempos. Em um deles, que pode ser tido como o núcleo central do filme, é o da viagem feita por Sophie (Frankie Corio), uma garota de 11 anos, e Calum (Paul Mescal), o seu pai, para um resort nas férias de verão. O segundo tempo apresenta Sophie já adulta, com sua esposa e seu bebê de poucos meses, aparentemente atormentada por memórias e saudades de seu pai. O tempo principal parece ser a lembrança desse segundo tempo, mas entre os dois há mediações: uma alucinada pista de dança e arquivos de vídeos gravados durante essas mesmas férias.
Em Sempre em frente (dir. Mike Mills), um arquivo também se apresenta como material de mediação da memória, mas nesse caso a mediação não se dá entre dois tempos diegéticos distintos, e sim entre o relato pessoal e geracional. No filme, Johnny (Joaquin Phoenix), um jornalista de rádio, precisa se tornar responsável pelo seu sobrinho, Jesse (Woody Norman), em um momento de dificuldade para a mãe dele, Viv (Gaby Hoffmann), irmã de Johnny. A trama do filme é pontuada por depoimentos, gravados pelo protagonista e sua equipe como parte de um grande projeto de reportagem de rádio, de crianças e adolescentes refletindo verbalmente sobre a existência, os afetos, as expectativas e as visões de mundo que estão construindo.
Assisti a Aftersun e Sempre em frente em um intervalo de poucos dias, e as experiências com ambos se misturaram. Não é apenas a trama que os dois carregam em comum – a relação familiar entre uma criança e um adulto que não convivem tanto quanto estão convivendo naquele espaço excepcional de tempo e nos dois casos em uma viagem, um lugar também de exceção às vivências da criança –, mas também um princípio de ativação da memória através do audiovisual. Em Aftersun, isso é literalizado pelo uso do vídeo em cena. Em Sempre em frente, é algo que se desdobra tanto do texto quanto da estilização imagética e sonora do filme – a fotografia preto e branco, uma apuração específica com a composição das imagens como imagens fotográficas, e a ideia de uma imersão sonora mediada pela tecnologia, no que os personagens praticam uma escuta das cidades através de aparelhos de captação de som e, na replicação desse som no filme, passamos a partilhar a escuta dos personagens.
Já em Aftersun a questão do vídeo se torna mais interessante por servir como mediador material de dois tempos que estão em cena. Em uma sequência particularmente potente (e demonstrativa da inteligência criativa de Wells, uma diretora estreante em longa-metragem), a imagem de vídeo congela e é arrastada para fora da cena por um movimento de câmera que revela aquele vídeo projetado em uma parede. Só então entendemos que é Sophie, adulta, quem projeta esse material, naquele momento, nas paredes de sua casa. Wells enquadra as imagens e monta o filme enfatizando picos de sensibilidade nas férias de Sophie (que, como tem sido sugerido em algumas entrevistas, é uma espécie de alter ego da própria diretora, que de fato fez uma viagem com seu jovem pai aos 11 anos e o perdeu aos 16 anos). As memórias em Aftersun não se completam porque não estão completas. Adulta, Sophie tem acesso apenas a fragmentos, que chegam a ela junto com os vídeos e um sonho reiterado da pista de dança, onde ela encontra o seu pai em meio à música e às luzes oscilantes.
Sempre em frente consegue elaborar muito bem essa ideia de uma memória que se perde. Mas, apesar dos padrões mencionados de estilização, essa ideia se desdobra mais no texto do que na forma do filme. Isso não faz do resultado menos impactante. A sugestão de Johnny, por exemplo, de que Jesse vai se lembrar apenas de pedaços da viagem que, naquele momento, estão fazendo, soa como algo avassalador para Johnny e também para mim, enquanto assisto ao filme. O bom texto tem também essa capacidade de afetar sensivelmente. Mills, no entanto, não radicaliza essa ideia na forma do filme do mesmo modo como Wells o faz. Sempre em frente é um filme coming of age (narrativa de crescimento), no fim das contas, maravilhoso, mas ainda bastante convencional em termos de linguagem, não desviando do padrão de experimento do cinema independente estadunidense dos últimos 10 anos. Aftersun, ao contrário, é um filme que procura se situar no entre-lugar da memória, na narrativa incompleta, na deriva da insônia.
Em um ano marcado por alguns dos melhores filmes do gênero coming of age dos últimos tempos – Licorice pizza (dir. Paul Thomas Anderson), Armageddon time (dir. James Gray), Pinóquio (dir. Guillermo del Toro) e Os Fabelmans (dir. Steven Spielberg) aqui se incluem –, Aftersun e Sempre em frente se destacam por talvez formularem (seja no texto ou na audiovisualidade) um sentido do gênero, por refletirem sobre os seus limites de alcance e por proporem um condicionamento audiovisual-narrativo que fique em um lugar entre a infância inapreensível e a melancolia do adulto. Aftersun está disponível para streaming no Mubi; e Sempre em frente, no Prime Video.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.