No ano que passou, trabalhei extensivamente na conclusão do doutorado e isso recorreu em duas consequências para as tradicionais listas de virada de ano desta coluna. A primeira consequência é uma quantidade menor de filmes, que vão se repetir através da lista, fruto da pouca disponibilidade de tempo para acompanhar tantos lançamentos e buscar filmes menos comentados como geralmente gosto de fazer. A segunda consequência seria um vício de olhar ou uma recorrência afetiva de um tipo de filme. Como apontei no texto sobre Aftersun e Sempre em Frente, este ano parece ter se aberto para uma espécie de renascença do gênero coming of age, as narrativas de crescimento. Hoje, no entanto, penso que pode ter sido a minha experiência como espectador e como sujeito que se abriu de maneira renovada para esse gênero, que tinha deixado de me interessar em anos anteriores. Acho que isso se dá pelo desenvolvimento de um olhar menos cínico e uma fé renovada na esperança. Sem mais prelúdios, vamos às listas.
Filme:
The Fire Within: Requiem for Katia and Maurice Krafft
Com Licorice Pizza, Paul Thomas Anderson entrega o seu filme mais original desde Embriagados de Amor (2002). Charlotte Wells tem uma das melhores estreias de qualquer cineasta em longas-metragens em Aftersun, filme que acompanha a imersão de uma personagem em arquivos e memórias de uma viagem com seu pai. Albert Serra radicaliza seu cinema focado em experiências de gozos letárgicos no seu primeiro filme contemporâneo, Pacifiction.
Direção:
Paul Thomas Anderson (Licorice Pizza)
Charlotte Wells (Aftersun)
Albert Serra (Pacifiction)
Joanna Hogg (The Eternal Daughter)
Hlynur Pálmason (Vanskabte Land)
Atriz:
Tilda Swinton (The Eternal Daughter)
Cate Blanchett (Tár)
Alana Haim (Licorice Pizza)
Margaret Qualley (Stars at Noon)
Mia Goth (Pearl)
Ator:
Colin Firth (A Escada)
Elliott Crosset Hove (Vanskabte Land)
Benoît Magimel (Pacifiction)
Colin Farrell (Banshees de Inisherin)
Franz Rogowski (Grande Liberdade)
Em Não! Não Olhe!, Keke Palmer interpreta uma trabalhadora da imagem e da imaginação com uma performance excessiva, mas meticulosa, inteligente e assombrosamente eficiente. Toni Collette morre algumas vezes em A Escada e, a cada reinterpretação dessa morte, a sua personagem e os sentidos e mistérios em torno dela se renovam. Meghann Fahy se tornou uma sensação da internet com um ou dois gestos silenciosos de contemplação na série The White Lotus.
Atriz coadjuvante:
Keke Palmer (Não! Não Olhe!)
Toni Collette (A Escada)
Meghann Fahy (The White Lotus)
Pantea Panahiha (Jaddeh Khaki)
Rejane Faria (Marte Um)
Alguns pais. Carlos Francisco consegue comunicar ao mesmo tempo uma experiência generalizada e um personagem completo, seu próprio, como um pai preso em uma crise de classe, raça, lugar e gênero, geracional e política em Marte Um. Ke Huy Quan se destaca no esplendor de Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo como um mediador, através do multiverso, de uma crise semelhante à que afeta o personagem de Carlos Francisco. Já Mohammad Hassan Madjooni não é nem sintoma nem mediador dessa crise, mas um passageiro passivo, ainda que atento, dos caminhos sem volta por onde ela conduz, em Jaddeh Khaki.
Ator coadjuvante:
Carlos Francisco (Marte Um)
Ke Huy Quan (Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo)
Mohammad Hassan Madjooni (Jaddeh Khaki)
Jeff Hiller (Alguém em Algum Lugar)
Brendan Gleeson (Banshees de Inisherin)
Jaddeh Khaki é um filme que se forma no conjunto desses quatro personagens em uma viagem de carro. Não seria certo dizer que cada um deles tem uma função a cumprir nessa viagem. O mais correto, ao que me parece, é entender que eles têm um lugar naquele carro, eles ocupam uma posição, e é essa posição que define a relação entre eles. Desse modo, Jaddeh Khaki conta bastante com um jogo de cena em torno da proximidade e distância entre esses personagens e atores.
Elenco:
Jaddeh Khaki
Armageddon Time
Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo
The White Lotus
Licorice Pizza
Essa é uma categoria difícil, inventada principalmente por meu contato com a pesquisa em audiovisual e pela influência que os estudos de performance têm tido para mim, principalmente a partir da minha amizade com o pesquisador Daniel de Andrade Lima, que, inadvertidamente, sugeriu a categoria. E esse foi um ano especialmente difícil de estabelecer parâmetros para ela, além do parâmetro mais óbvio e direto, em que um único filme desta lista se encaixa. Dito isso, O Joelho de Ahed é um filme de artista, um filme autorreflexivo sobre o potencial político da performance, de se colocar em cena e de como nós nos colocamos em cena. O trabalho coreográfico que destaco aqui é um que mistura a coreografia da câmera com a dos atores que a câmera procura, como se a câmera estivesse ela também em performance (e está!). Por isso, talvez, esse filme me lembra tanto o cinema de Glauber Rocha.
Trabalho coreográfico:
Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo
O Ensaio
Aftersun
Roteiro:
Jaddeh Khaki
Banshees de Inisherin
Licorice Pizza
Sempre em Frente
Montagem:
Aftersun
Licorice Pizza
Armageddon Time
The Fire Within: Requiem for Katia and Maurice Krafft
Sempre em Frente
A fotografia de Pacifiction nos entrega uma visão de uma Polinésia atômica, presa em um estranho e artificial pôr-do-sol constante. Skinamarink é um filme extremamente inventivo com o enquadramento, com a consciência do que se mostra e do que não se mostra na imagem fílmica. Em Aftersun, as imagens seguem um fluxo da memória, interessada nos detalhes, na perspectiva fugidia de uma garota de 12 anos.
Fotografia:
Pacifiction
Skinamarink
Aftersun
Vanskabte Land
Armageddon Time
Trilha Sonora:
Marte Um
Música:
“Drive”, The Souvenir: Part II
“Black Boy Joy”, Central Park
“Ciao Papa”, Pinóquio
O curta-metragem Wilderness, dirigido por Doug Aitken, é um experimento com a sonoridade. No filme, cria-se um coro a partir de vozes artificiais, mecanizadas, mas sincronizadas a corpos humanos na praia. Da mesma forma que a voz humana se confunde com uma voz sampleada, os focos de luzes dos celulares são encenados como semelhantes à imagem do sol distante. No mundo desse filme, não há separação entre espaços e sons naturais e aqueles que são produzidos por mediações tecnológicas. Em cena, são todos partes de uma mesma superfície audiovisual.
Trabalho de Som:
Wilderness
Aftersun
Não! Não Olhe!
Sempre em Frente
Escolhi colocar como link para um texto externo sobre O Ensaio uma das críticas mais duras à série. Realmente, há pouco interesse de Nathan Fielder, que desenvolve a série, em refletir sobre os seus personagens para além daquilo que ele pode controlar e estudar neles. Ao mesmo tempo, a falha ética da série (e a gravidade dela) é sempre colocada em dúvida pela pouca clareza do limite entre ficção e documentário. Minha perspectiva, evidentemente mais favorável a Fielder, é que poucas vezes vimos um interesse tão explícito e radicalizado pelo controle do corpo, do movimento e do sujeito em cena no audiovisual. Em um ano menos interessante que outros em produções seriadas, algo tão raro é sempre digno de atenção – e deveria estar mais no centro das discussões.
Série ou minissérie:
O Ensaio (primeira temporada)
Hacks (segunda temporada)
The White Lotus (segunda temporada)
Better Things (quinta temporada)
A Escada
Le Pupille é construído pela diretora Alice Rohrwacher como um especial de Natal televisivo e compartilha do carisma, artifício e humor dos melhores exemplos desses. Mondo Cacho é um relato muito assertivo das diferentes vivências de estudantes de humanas e artes na UFRB, em Cachoeira, na Bahia, demonstrativas de tensões políticas e estéticas de uma experiência de democracia no interior do país. Em Ice Merchants, o português João Gonzalez cria uma animação imaginativa e belamente realizada de um pai e filho que saltam todos os dias de uma casa nas montanhas geladas.
Curta ou média-metragem:
Le Pupille (dir. Alice Rohrwacher)
Mondo Cacho (dir. Matheus Leone)
Ice Merchants (dir. João Gonzalez)
Na Estrada Sem Fim Há Lampejos de Esplendor (dir. Liv Costa e Sunny Maia)
Sonhos (dir. Chico Lacerda)
Enquanto outro documentário sobre Katia e Maurice Krafft, neste mesmo ano, trata essas figuras como objetos de olhar e estudo, o diretor Werner Herzog os trata como sujeitos do olhar, cineastas e autores de imagens em The Fire Within.
Documentário:
The Fire Within: Requiem for Katia and Maurice Krafft
Mondo Cacho
As Últimas Estrelas do Cinema
Nest
Summer of Soul (…ou, Quando a Revolução Não Pode Ser Televisionada)
Animação:
Pinóquio
Ice Merchants
Au Revoir Jérôme!
Direção de Arte:
Pinóquio
Os Fabelmans
Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo
Licorice Pizza
The Eternal Daughter
A cenografia de Licorice Pizza transforma a Los Angeles dos anos 1970 em uma cidade viva, que veste as cores de seus personagens. A recriação de Steven Spielberg de sua própria juventude em Os Fabelmans, traz no trabalho de cenografia a excelência visual fantasiosa e carregada de emoção que é comum nos filmes do diretor. Tudo em Todo Lugar ao mesmo tempo funciona como um dos grandes filmes de ação dos últimos anos principalmente pela maneira como o espaço é organizado para receber as dinâmicas da cena e as apoteoses afetivas que marcam o filme.
Cenografia:
Licorice Pizza
Os Fabelmans
Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo
Crimes do Futuro tem o diretor David Cronenberg retomando o cinema visualmente inquietante que marcou a sua filmografia nos anos 1980. Aqui, personagens remodelam cirurgicamente o próprio corpo como uma forma de arte performática. A filosofia, ou conclusão moral, por trás do filme é incerta, principalmente por Cronenberg tratar essa narrativa com uma frieza distanciada, sem interpor julgamentos sobre as figuras em cena. No que tem de mais estranho, Crimes do Futuro celebra, através do trabalho do corpo em cena, da maneira como ele aparece, esse tipo de sublimação estética das transformações plásticas que se apresentam.
Figurino e maquiagem:
Crimes do Futuro
Licorice Pizza
Le Pupille
Hemlocke Springs viralizou no TikTok com a música “Girlfriend”. No videoclipe da música, uma produção independente dirigida por Ana Peralta Chong, temos melhor acesso a imaginação da artista, que, mesmo em uma produção de alguma precariedade econômica, faz uso indiscriminado do excesso, das cores e do artifício, tudo isso aplicado a espaços comuns da casa e da vizinhança. Para mim, tudo remete a brincadeiras adolescentes no ano de 2009. Dou crédito a uma nostalgia usada não para generalizar o passado, mas para ativar as sensibilidades da memória.
Videoclipe:
"Girlfriend", Hemlocke Springs (dir. Ana Peralta Chong)
"Ancestress", Björk (dir. Andrew Thomas Huang)
"No one dies from love", Tove Lo (dir. Alaska)
Menção honrosa:
À peça Estudo N 1 Morte e Vida, do grupo Magiluth, do Recife. O Magiluth construiu uma reputação para trabalhos experimentais no teatro e para releituras de textos canônicos de autores como Nelson Rodrigues, William Shakespeare e, agora, João Cabral de Melo Neto. Essa representação de Morte e Vida Severina é uma que coube perfeitamente ao zeitgeist, tornando-se uma interpretação estético-performática do ano de 2022. A peça funcionou também como o prenúncio de uma catarse que viria com a vitória de Lula para um terceiro mandato como presidente do Brasil. Na segunda vez que assisti ao espetáculo, em uma apresentação com membros do Movimento Sem Terra de Pernambuco ocupando a plateia, gritamos por Severino. Que esse texto seja muitas vezes reapresentado e que continuemos gritando.
Listas anteriores:
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.