É cabeleira compacta, de fios grossos. Não dá trança, não dá franja; tampouco rabo ou coque. Cresce farta pra cima e miudinha pra baixo, dá a impressão que a testa, curta por natureza, vai sumir.
Os primeiros fios brancos já sobem pelas costeletas querendo clarear o topete.
Grisalho sim, careca duvido. Ali a cobertura é como salário de alguns barnabés, abundante e vitalícia.
Quase toda semana cruzo este mesmo homem, a quem já chamo de cabeludo. Cabeludo sim, encrespado não. Simpático, me olha. Nosso primeiro cumprimento é uma levantada de sobrancelhas e um meneio vertical de cabeça.
Mais uns dias e evoluímos para um sorriso. Até que numa quarta-feira de sol, o sujeito me surpreende.
- Bom dia.
Se falou é porque me conhece, pensei. E eu, o conheço de onde?
Sei que já vi o cabeludo em outro lugar, em outra hora, em outro ambiente.
Mas onde? Da curiosidade pra angústia é como dobrar a esquina.
Outro dia e a mesma rua. O cabeludo é pura pressa, sacola na mão, mochila nas costas e os limpíssimos tênis brancos. Novamente, nossas cabeças balançam. É só.
Seria garçom? Imagino o cabeludo com uma gravata borboleta, uma bandeja e um guardanapo branco apoiado no antebraço. Talvez um porteiro indo render o vigia da noite. Ou o dono da academia, que às vezes também caminha na esteira enquanto confere o movimento dos clientes?
Minha enxurrada de palpites é para encontrar uma pista ou o cenário em que já nos vimos para então desvendar o mistério.
Um amigo bruxo garantiu: é memória de vidas passadas.
A taróloga mexeu e remexeu, mas o baralho não deu resposta.
Minha filha mais nova arriscou uma estratégia.
- Segue o cara, pai. Aí você vai ver onde ele trabalha.
Sugestão boa na teoria. Nos cruzamos sempre fugindo do atraso.
Eu, com medo de perder o ônibus para a Aclimação. Ele, chispado, a ganhar segundos.
É o tipo de tormento em que só há uma solução.
- Amigo, desculpe perguntar, mas eu não te conheço de algum lugar, quer dizer: você não me conhece?
A timidez me impede de arriscar o vexame.
O incômodo já é agonia e se repete com outra pessoa. Vou à psicanalista para a sessão de toda semana. Corro e entro no elevador, sou o último. Lá atrás, encontro olhos familiares num rosto coberto pela máscara. Olho uma, duas vezes.
Concentração absoluta, esforço de memória e nada. De novo, deu branco.
Será que falo na terapia? Já tinha escolhido outro assunto.
- Dezessete. Avisa a ascensorista.
Ele sai do elevador e acena pra mim. Olho com máxima atenção. É homem passado dos quarenta e cinco, troncudo, pelo menos setenta quilos e de altura média. Ou seja, igual a milhões de brasileiros, ucranianos, mexicanos.
Será que frequenta o bar da Irene, na Vila Buarque? A banca do jogo de bicho? É paciente do mesmo consultório? Com a porta ainda aberta, o desconhecido-conhecido solta a voz com a discrição de um feirante na hora da xepa.
- Aí Cosme, nem me reconheceu, hein?
Não consigo falar nada. Ele, ao contrário, esbanja intimidade. É o próprio Sílvio Santos num domingo de auditório festivo.
- Quanto tempo, você continua o mesmo. Quer dizer, um pouquinho mais velho. Hahaha. Não lembra de mim? Vou tirar a máscara.
- De onde mesmo que a gente se conhece? É o que consigo dizer.
- Ei memória ruim, depois te mando mensagem. Tenho teu contato, esqueceu? Abraço na família. As suas meninas devem estar gra...
A porta se fecha.
Todos tiram os olhos dos celulares e a ascensorista me encara. Sinto orelhas e bochechas esquentarem.
O andar passou, o elevador desceu e eu saio no térreo em busca de ar.
Uma moça bonita se aproxima.
- Acho que conheço o senhor.
- Não é possível.
- O que foi, se assustou?
- Nada não.
- Sou a recepcionista do consultório e o senhor é o paciente das dez, não é?
- Sim.
- A doutora está atrasada. Se quiser, subimos e eu preparo um café. Comecei semana passada, por isso que não lembra de mim. Estefânia, muito prazer.
- Prazer. Sou...
- Já sei seu nome, é Luis Cosme. Sempre tiro uma foto com o celular e identifico a pessoa. É horrível aquela dúvida de não saber com quem estamos falando.
Um mês depois vivo situação oposta. Aquela em que a gente lembra da pessoa, do nome, de momentos, mas não é reconhecido por ela.
Aconteceu assim. Depois de vinte anos de espera, vou à festa literária de Paraty, a Flip.
Lá, vejo duas colegas. Com uma trabalhei no século passado. Ela se tornou repórter conhecida, faz coberturas internacionais, entrevista celebridades. É jornalista famosa, dessas que dão autógrafo. A outra é editora com quem estive em algumas redações.
Cumprimento as duas, falamos dos escritores, das filas, da muvuca. Sinto a repórter desconfortável e séria. Uma adolescente pede pra tirar foto com ela. O pai da menina quer mais uma.
Eu me despeço e atravesso a rua de pedras salientes.
Ando vinte metros e ouço a voz que o público da Rede Globo conhece bem.
- Cosme, Cosme.
Com a mão, ela me pede que volte.
- Poxa, que distraída que eu sou. Não te identifiquei. Quer dizer, eu sabia que te conhecia mas não lembrava do nome, nem de onde. Poxa, desculpe.
A gente, enfim, fala de igual pra igual e se despede, gargalhando com o reencontro desencontrado.
Ainda sobre as pedras de Paraty, imagino a cena depois da primeira despedida.
A repórter esquecida pergunta à amiga em comum.
- Fala rápido, de onde conheço esse cara? Ele sabe tudo de mim, disse até que esteve naquela festa que dei em casa há vinte anos! Perguntou dos meus filhos.
A amiga esclarece e a repórter enfim me chama.
Então não é só comigo, comemoro aliviado em meio à multidão de desconhecidos que passeia em Paraty.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.