SEM ANISTIA!

O Brasil, para ser reconstruído, precisa ser refundado - Por Monica Benício

Um país que não constrói memória, que conta a história do ponto de vista do opressor e que não encara a verdade, não poderá nunca se livrar do ciclo vicioso de autoritarismo

Projeção de imagem de Marielle Franco.Créditos: @projetemos
Escrito en OPINIÃO el

O bolsonarismo é fruto de um Brasil que nunca acertou as contas com o seu passado. É duro, mas é verdade. O bolsonarismo é a expressão da extrema-direita brasileira e a fórmula mais nua e crua do projeto das elites tacanhas e jocosas de nosso país. É a cara, "esculpida em carrara", de um Brasil autoritário, que sempre perdoou torturadores, golpistas e senhores de engenho. De um Brasil do coronelismo, onde a bala e a violência sempre foram meio de extermínio e segregação racial.

Combater a expressão da extrema-direita, encarnada no bolsonarismo, é a dura e necessária tarefa para a reconstrução do país. É a chance que temos de refundar o Brasil. Vivemos em 134 anos de República, pouco mais de 50 anos de democracia. Interrompidos com golpes da oligarquia e do militarismo brasileiro, diversas vezes apoiados por grande parcela da sociedade civil, que nunca conseguiu romper com uma lógica de "cidadania regulada", como já nos apresentou Wanderley Guilherme dos Santos. Essa é uma verdade que precisamos admitir. Nosso povo foi, a partir dos projetos das elites, acostumado com o golpe, com a corrupção e o autoritarismo. E isso faz parte de uma batalha cultural enorme que temos o dever de travar enquanto povo. Um outro Brasil é possível, eu acredito!

Há pouco mais de 40 anos, a campanha popular pelo fim da ditadura clamava: “Anistia ampla, geral e irrestrita”. Um apelo depois de 21 anos de ditadura, centenas de mortos e desaparecidos e muitos companheiros exilados. A conciliação feita na época, e criticada por diversos setores da esquerda brasileira, foi dar anistia também aos torturadores e generais da ditadura. Queríamos anistia, mas ela não deveria ser para todos, pois isso seria admitir que não há culpados. E não saber apontar quem são os culpados e não fazer reparação sobre as violências sofridas é um grave problema, pois não responsabilizar faz com que possamos repetir os mesmos erros cometidos no passado. 

O que o povo clamava a plenos pulmões no discurso de posse do Presidente Lula era “SEM ANISTIA”, uma referência histórica a quem não aguenta mais um país que sistematicamente perdoa seus algozes. 

Essa história tampouco começou na ditadura civil militar brasileira. O Brasil, último país das Américas a abolir a escravidão, que só o fez pela pressão do comércio exterior, e o mesmo que ao assinar a "liberdade" de pretos e pretas, não se preocupou em formular nenhuma politica de reparação. Levando a maior parte do povo brasileiro à miséria, convivendo com os traumas seculares de uma sociedade escravocrata, com a manutenção de um sistema exploratório que ainda os manteve em servidão e invisibilizados pela história. Até hoje, ainda são bem poucas as iniciativas, do Estado e da sociedade civil, que buscam resgatar e reparar a história contínua e permanente do racismo brasileiro. 

O extermínio de centenas de povos indígenas, no passado e no presente, nesse país não foi nunca motivo suficiente para uma nova política de demarcação de terras. O etnocídio e o roubo das terras de nossos povos originários é a marca fundacional da história do Brasil. Isso não é uma diferença de opinião, isso é um fato histórico, portanto científico.

Até hoje não temos respostas e nem responsáveis por crimes como Mariana e Brumadinho, os maiores crimes ambientais do Brasil, que acabou com a vida e o sustento de milhares de pessoas e alterou permanentemente biomas inteiros. Até hoje não temos respostas sobre quem mandou matar Marielle. Não temos resposta sobre quem assassinou Bruno e Dom. Um país que não constrói memória, que conta a história do ponto de vista do opressor e que não encara a verdade, não poderá nunca se livrar do ciclo vicioso de autoritarismo. 

Uma das principais ideias defendidas pelo patriotismo fascista é a ideia de que o povo, como forma única e homogênea, está sendo atacado por um perigo externo. Caracterizado comumente na história como o “fantasma do comunismo”. Digo isso porque não é como se as pessoas soubessem exatamente do que se trata o comunismo, acredito que elas o percebam apenas como sombra, como medo de desapropriação daquilo que eles consideram único e correto. Por isso, para o bolsonarismo, é tão importante demarcar que o Brasil pertence a eles como nação, aos homens e mulheres de bem, sobretudo aos brancos. 

Enquanto pedimos por justiça sem lembrar que é preciso reparar os injustiçados e punir os injustos, a justiça jamais será feita. Enquanto pedirmos por democracia sem que os direitos civis sejam dados à favela, como são dados ao asfalto, democracia para o povo significará muito pouco para ser amplamente defendida. Enquanto continuarmos bradando que o Brasil é o país da impunidade sem reconhecer que, de fato, o Brasil é o país da imunidade dada às elites e de um violento punitivismo ao povo, jamais teremos paz. 

Por isso, a enorme tarefa histórica que temos é derrotar o bolsonarismo, e qualquer manutenção de ideais fascistas dessa nação. O êxito desta tarefa só será conquistado ao reconhecermos seus financiadores, seus articuladores do mercado financeiro, seu braço fundamentalista e militar, e que todos sejam devidamente punidos com o rigor da lei. Não, não adianta prender 1.500 pessoas que invadiram o Planalto, se entre elas não estão aqueles dotados do verdadeiro poder de ameaçar a democracia. 

Não se trata apenas de ser a favor ou contra vandalismos, violências ou excessos. É saber a serviço de quem, e de qual ideologia eles foram planejados e orquestrados. Pois essas pessoas estão em uma escala de poder e querem manter seus privilégios, querem se manter ocultos e impunes. 

Não podemos acabar com esse ciclo de ódio e autoritarismo sem que haja reparação àqueles que, não só agora, mas historicamente são vítimas das elites e coronelistas desse país, que não suportam mudanças sociais que os façam perder poder. Não dá para ter união e reconstrução sem memória, verdade, justiça e reparação. É preciso reconhecer a parcela da sociedade civil que segue legitimando o fundamentalismo religioso e o militarismo autocrático e combatê-la. Sobretudo, antes de reconstruir o Brasil, precisamos juntos refundá-lo em outros marcos de poder e relações sociais.