CESAR CASTANHA

Joanna Hogg e artista inquieta

Em nova resenha, Cesar Castanha analisa o filme "The eternal daughter", de Joanna Hogg, e traça paralelos com outras obras da cineasta

Frame do filme "The eternal daughter" (dir. Joanna Hogg, 2022).Créditos: Reprodução
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Em The eternal daughter (dir. Joanna Hogg, 2022), Julie é atormentada por um desejo de fazer um filme sobre a sua mãe, Rosalind. Para tentar conceber o roteiro desse filme, ela reserva para as duas um quarto em uma pousada isolada, que ocupa a mesma edificação que sua mãe costumava frequentar como uma casa da família enquanto jovem. Julie é casada e não tem filhos. A relação entre as duas é particular, intensa, e essa intensidade (em um filme no geral monótono) é revelada numa escolha de performance desenvolvida pela diretora: Julie e Rosalind são interpretadas pela mesma atriz, Tilda Swinton.

Joanna Hogg é uma diretora inglesa em atuação desde os anos 1980, quando dirigiu o curta-metragem Caprice (1986), estrelando Tilda Swinton em seu primeiro papel. Enquanto Swinton enveredou pelo cinema experimental inglês por todos os anos 1990, Hogg passou a trabalhar com direção para televisão até os anos 2000, quando começou a dirigir estranhos longas-metragens: morosos estudos de classe e de relacionamentos interpessoais, como Unrelated (2007) e Exibição (2013), ambos disponíveis no Brasil no Mubi.

The eternal daughter se distancia tematicamente de forma significativa desses outros filmes, apresentando, no lugar desse olhar dirigido a um cotidiano tedioso, uma narrativa de luto – ou uma história de fantasma, como sugere o cartaz do filme. Esse desvio temático, no entanto, leva-me a reconhecer uma conexão imprevista interna à filmografia de Joanna Hogg, principalmente no que esse filme se apresenta como uma surpreendente conclusão de uma trilogia dentro de sua obra. A diretora parece ser mobilizada a colocar em cena repetidamente a experiência de artistas assombrados.

Exibição, por exemplo, acompanha um casal de artistas nos seus últimos meses na casa em que viveram por 16 anos. O papel da casa no filme, esse espaço que emoldura os personagens, as suas vivências e ansiedades, foi bem observado pela crítica. O que mais me chama atenção nele, porém, é a maneira como Hogg segue dois artistas em processos difíceis e atordoantes de criação. O sentimento de que nada acontece, que se pode ter com o filme, é decorrente dessa prática lenta de pensar, planejar e executar arte. Exibição, assim, arrasta-se através desse traquejo artístico, de pessoas ainda irritadas pela mudança iminente e uma crise no casamento.

O cinema de Hogg passou a gozar de renovada notoriedade com os filmes The souvenir (2019) e The souvenir: part II (2021), uma obra relativamente autobiográfica sobre uma cineasta envolvida em um relacionamento abusivo com o namorado (no primeiro filme), que depois decide escrever um filme sobre esse relacionamento. O jogo metalinguístico que Hogg aciona na distribuição dessa narrativa em duas partes (em que a primeira parte aparenta ser o filme que ela dirigiu na segunda parte) é bastante original. A protagonista de The souvenir, Julie (Honor Swinton Byrne), o suposto alter ego de Hogg, comunica a sua aflição com uma atuação muito dedicada a incorporar esse estado criativo do artista jovem, que não é frequentemente recebido com confiança ou entusiasmo por seus pares.

The eternal daughter dá continuidade ao ímpeto autobiográfico de Hogg, reposicionando o gênero (há algo de mistério fantasioso nele) e localizando as personagens alguns anos adiante. Swinton, que interpretou Rosalind nos dois The souvenir, como dito, agora assume esse lugar duplo da personagem, o que faz deste um filme estranho. Não estranho apenas pela presença em dobro de Swinton, mas estranho por uma forma que se contenta com colocar as duas personagens em cena usando somente um artifício de plano e contra plano – ou seja, está sempre em cena uma das personagens de cada vez, e elas nunca compartilham o mesmo quadro na imagem. Isso se torna ainda mais inquietante por definir, necessariamente, o escopo de cada quadro, que se torna restrito, fechado em planos americanos de cada personagem. A falta de uma visão do todo, de um contexto da cena, também leva a uma rigidez dos diálogos, em que cada fala começa e termina dentro do plano de cada personagem, criando a impressão de um texto muito artificial porque aparece como texto, como fala completa, ensaiada.

A inovação do cinema de Hogg está, a meu ver, em como ela trabalha um tipo de amargura ou angústia do artista a partir de formas não convencionais que nos leva, principalmente em sua trilogia mais recente, a encarar de frente um método de criação e maneiras de ficcionalização dessa narrativa autobiográfica. Acho fascinante como, ao defender desde pelo menos Exibição (2013) essa ideia do fazer artístico como um fazer inoportuno, obsessivo e letárgico ao mesmo tempo, ela tem encontrado novos modos de materializar, nas suas ficções, justamente esses aspectos mais vexados do seu próprio exercício como artista e cineasta. A sua trilogia autobiográfica, justamente por seguir, em cada filme, uma forma genérica, audiovisual, um método diferente, tornou-se uma das mais intrigantes observações do cinema pelo cinema de anos recentes.