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Conforme apresentado na parte I deste artigo, no início do século XX, sob o ânimo da Revolução Soviética e da consolidação do comunismo no continente americano, o cubano Julio Mella, o peruano José Carlos Mariátegui e o brasileiro Caio Prado Júnior elaboraram importantes conceitos sobre a questão nacional de seus países e da América Latina como um todo. Vejamos agora algumas características da interpretação destes três pensadores marxistas.
Julio Mella e a questão nacional
Julio Antonio Mella Mc Partland foi um dos fundadores do movimento estudantil da América. Estudou filosofia, direito e trabalhou como jornalista. Seu marxismo se mirou fortemente no exemplo de Lênin – “homem de ferro e luz da Rússia Vermelha”, “um super-homem que soube com o poder de seu gênio dar um poderoso impulso à transformação de uma civilização” (MELLA, 1999, tradução nossa). “A causa do proletariado é a causa nacional” – afirma em “Los nuevos Libertadores”, ao criticar a entreguista Emenda Platt: “hipoteca” com que Cuba se submeteu aos Estados Unidos para lograr sua independência da metrópole espanhola. O proletariado – afirma ele: “é a única força capaz de lutar com probabilidades de triunfo pelos ideais de liberdade, na época atual”; assim, tal qual um “novo Espártaco nos campos e nas cidades”, ergue-se para “lutar por todos os ideais do povo”, sendo seu objetivo a construção de “um regime de homens do povo”, pois os proletários sabem que essa é a “única garantia da justiça social”. Para Mella (1999), portanto, o intuito da organização política dos trabalhadores é o de “socializar” a riqueza, conforme os “princípios” que Karl Marx “erigiu em axiomas teóricos”, e que Lênin desenvolveu como “magníficos monumentos de beleza e justiça” – processo transformador que somente os “professores fossilizados” e os “burgueses sem cérebro combatem”.
Em uma visão perspectiva – pela qual o tempo nos oferece um ângulo mais acurado para a compreensão do todo histórico –, é importante perceber Mella como uma peça fundamental que constitui a “continuidade revolucionária” cubana, começada com o socialismo idealista de José Martí, e que triunfaria quase um século depois com a revolução liderada por Fidel Castro Ruz (MELLA, 1975).
No I Congresso Revolucionário dos Estudantes de Cuba, organizado pelo próprio Mella em sua época universitária, o marxista cubano condena com veemência o imperialismo, elogia a Revolução Russa, e manifesta apoio aos movimentos de libertação nacional africanos e asiáticos. Junto a outros importantes lutadores marxistas, como Carlos Baliño (operário), Miguel Pérez (professor) e Alfonso Bernal (psicólogo), funda o primeiro Partido Comunista cubano, em 1925 (SILVA GARCÍA, 2016).
Em sua obra, de curta extensão dada sua breve vida, destacam-se os seguintes escritos: “A guerra de classes em Cuba”, e “O proletariado e a libertação nacional”. O primeiro deles, de 1926, é um veemente protesto contra a matança de vários de seus camaradas, dirigentes operários, pelos agentes da ditadura de Gerardo Machado; no início deste texto, em vista da luta de classes que se acirrava e de uma burguesia cubana que se mostrava aliada do imperialismo, afirma que a “guerra classista explodiu brutal, violenta, sanguinária”: “Não há mais pátria”, mas apenas “classes inimigas”. Sobre Machado, sua análise é de que o tirano não passa de um “girino incompleto”, membro de uma “classe nacional que ainda não nasceu”; que se utiliza do “fascismo” como um instrumento conservador, um “remédio temporário” contra a democracia – prática contudo incapaz de resolver o “mal social” cubano. Observa ainda que, não obstante, sua doutrina reacionária, ele não é capaz de deter a marcha dos acontecimentos: o “sangue é o adubo da liberdade”. Neste processo histórico, Mella invoca o “passado heroico” socialista que serve de “guia” à classe proletária, desde o “grito das vítimas imoladas nas valas da Comuna de 1871”, ao “clamor mundial da revolta de 1917” dos bolcheviques (MELLA, 1971).
Já o outro texto mencionado, de 1928, se trata de uma crítica ao nacionalismo populista, corrente que ganhara força popular por toda a América através da influente APRA de Haya de la Torre. Mella reitera aí sua ideia de que não existe uma “burguesia nacional” latino-americana, pois que tais elites nativas são sócias e, portanto, aliadas dos imperialismos. Em sua argumentação, cita passagem de Lênin (de tese ao II Congresso da Internacional) em que o bolchevique afirma – em oposição ao “esquerdismo” ingênuo – que nos “países atrasados e nas colônias”, a Internacional deveria sim apoiar os “movimentos nacionais de libertação”, frisando por outro lado que tal aliança deve se dar apenas “temporariamente” e que o movimento proletário não deve “se fundir” com a “democracia burguesa”, o que seria comprometer sua autonomia, mas sempre salvaguardar “expressamente sua independência”. Esta opinião de Lênin sobre a “frente única” – diz Mella –, mostra-o como o mais “prático e exato intérprete de Karl Marx”. Para Mella (1971), a “frente única” proposta pela APRA, ao não estabelecer explicitamente o papel político do proletariado, se reduz a uma proposição “abstrata”: e portanto “não passa da frente única em prol da burguesia”, esta classe sempre “traidora de todos os movimentos nacionais de verdadeira emancipação”. E complementa de forma categórica: se o imperialismo é o “ladrão estrangeiro”, as burguesias na América Latina são os “ladrões nacionais”.
Mariátegui e a questão nacional
Outro influente pensador da questão nacional americana – e um de nossos marxistas mais universais – foi José Carlos Mariátegui La Chira. Especificamente sobre a Revolução Russa, escreveu dezenas de escritos, em que trata de temas que vão desde a conjuntura política, ao processo de organização institucional, passando ainda pela análise de personagens revolucionários bolcheviques – como Lênin, que considera um líder de “visão panorâmica e certeira” que compreendeu bem a “direção da história contemporânea”.
Mariátegui vê na Revolução Soviética um exemplo a ser seguido, não como “modelo” (a ser copiado), mas como um “guia” nas tomadas de decisões que cada povo deve fazer por si. Em posse desta bússola, polemiza com revisionistas, com a social-democracia reformista da Segunda Internacional (paralisada por seu “pacifismo estático” evolucionista) e, mais tarde, com o eurocentrismo que ele constata em algumas teses da Terceira Internacional.
Ainda que tenha apoiado e participado, até falecer, da Internacional Comunista – a que vincula o Partido Socialista Peruano, de que é fundador –, Mariátegui rechaça a concepção desta organização, segundo a qual os comunistas deveriam promover a criação de “repúblicas nativas independentes” (MARTINS-FONTES, 2011). Nesta tese, vê uma leitura equivocada das teses de Lênin acerca da autodeterminação dos povos. Para ele, o problema no Peru era de fato a não resolvida “questão agrária” (MARIÁTEGUI, 1971; 1989). A realidade peruana era bem distinta da europeia, e diferente das nações mais industrializadas da América (como Brasil e Argentina). Em seu país andino, três quartos da população eram indígenas; portanto, afirma, este povo, em sua maioria camponeses, tem de ser protagonista do processo revolucionário. A revolução, diz ele, é o novo “mito” do contemporâneo, o “antídoto” ao “niilismo burguês”, a “esperança” que reergue e anima o povo, o indígena: uma utopia concreta. Com isto, Mariátegui recusa a ideia “mecanicista” – que então ganhava dimensão – de que o Peru tinha de promover uma revolução democrático-burguesa. Com argumentação farta e precisa, desmonta a hipótese de existência de uma “burguesia nacional”: a burguesia peruana falhara em seu tempo na execução da tarefa revolucionária que lhe cabia, de modo que agora é tarefa do movimento socialista de trabalhadores do campo e da cidade levar adiante esse processo.
Nessas reflexões, ressalta ainda certas características históricas do povo inca, que construiu um modo de produção que ele conceitua como “comunismo agrário”, defendendo que na Revolução Peruana poderia se dar uma passagem direta (sem a etapa capitalista), que levasse aquela economia ainda bastante comunitária e pouco afeita ao individualismo ocidental, a uma sociedade comunista – ideia semelhante àquela de Marx, em sua correspondência com Vera Zasulich, texto que, contudo, Mariátegui não lera (MARTINS-FONTES, 2018).
Caio Prado e a questão nacional
Vejamos por fim algumas notas sobre o tema da questão nacional presentes na obra do historiador e filósofo Caio da Silva Prado Júnior, pensador crítico que foi um dos maiores expoentes do marxismo brasileiro, e pioneiro em desenvolver teoria contrária à concepção etapista e aliancista que, a partir dos anos 1930, vigorou nos debates da Internacional (e por conseguinte dos partidos comunistas de todo o mundo).
Segundo ele, é errada a leitura que afirma terem um caráter “feudal” as economias coloniais latino-americanas. Em correspondência de 1933 com o trotskista Lívio Xavier, Caio Prado argumenta que na evolução histórica brasileira não houvera condições de se estabelecer um regime feudal, tendo em vista a parca povoação do Brasil colônia. Este diálogo se dá durante o início da elaboração de uma das principais teses caiopradianas – a do “sentido histórico” –, teoria sistematizada e aprofundada em obras clássicas como, entre outras, Evolução Política do Brasil (1933) e Formação do Brasil Contemporâneo (1942), e que seria objeto de diversas polêmicas no âmbito do PCB e Internacional. Tal concepção, tida atualmente como uma de suas maiores contribuições ao marxismo, afirma que o Brasil, desde seus primórdios, foi organizado como um empreendimento voltado para suprir as demandas do mercado europeu. Em suas palavras: “uma vasta empresa comercial” destinada a “explorar os recursos naturais de um território virgem” (PRADO JÚNIOR, 2000; 1980).
Tal tese foi depois estendida para a América Latina como um todo, em artigo – pouco conhecido devido a obstruções relativas a direitos autorais – intitulado Zonas Tropicais da América (PRADO JÚNIOR, 1936). Neste texto, Caio Prado afirma que a “América Latina”, após “quatro séculos de evolução”, ainda se mantém, como no começo da colonização, um “apêndice tropical”, ou seja: “o complemento econômico das regiões temperadas onde se localizam as grandes potências industriais” (MARTINS-FONTES, 2018).
Entusiasta da Revolução Russa – ainda que em certas ocasiões tenha criticado posturas soviéticas –, ele entende que os bolcheviques ofertaram ao socialismo e ao mundo uma “experiência acumulada”, a qual, contrariamente ao que muitas vezes se afirma, não constitui uma “receita” ou “dogma”, mas se trata sim de “uma experiência orientadora da transformação [social]” (PRADO JÚNIOR, 1967).
Assim, em debates sobre a “Revolução Brasileira”, já nos anos 1930 discorda de certas teses do PCB acerca da suposta necessidade prévia de uma “revolução burguesa” no Brasil: pois o que valeu para a Rússia, não teria de valer para nós. Em carta ao Comitê Central de São Paulo do PCB – inédita em português, mas publicada em recente antologia castelhana de sua obra –, Caio afirma decidido que não via no Brasil nenhuma “iminência” ou “sintoma” de uma “revolução burguesa”, como supunha seu partido (PRADO JR, 2020). Décadas depois, nas polêmicas sobre o tema dos anos 1960 – após o golpe militar de 1964 –, declara ter sido um erro a posição do PCB de ter apoiado uma “revolução nacional” cuja base social era a “burguesia” (SECCO, 2020).
Segundo Caio Prado, não cabe a um povo copiar ideias e modelos históricos externos, mas com base nas experiências revolucionárias vitoriosas, cada nação deve construir sua própria interpretação do processo histórico, e do modo mais acurado possível, pois que assim será possível “mobilizar” em grau suficiente as “verdadeiras forças” e os “impulsos revolucionários” de seu povo (PRADO JR, 1966).
Em suma, além de negar a suposição de que no Brasil houvesse ainda “resquícios feudais” – posto que nossa realidade prévia à consolidação do capitalismo fora “escravista” e não “feudal” –, o marxista brasileiro afirma ainda que os capitais estrangeiros e nacionais em nosso país e na América Latina foram historicamente se “combinando”, de maneira que não existiu, nem existe, entre nós uma “burguesia nacional”. Ou seja: não há uma suposta parcela das classes dominantes “nacionalista”, “anti-imperialista”, como imaginava a teoria majoritária acerca de nossa Revolução Brasileira
Considerações sobre o presente
Para além dos marxistas aqui tratados, outros incontornáveis pensadores de nossa América trilhariam o mesmo caminho de negação da tese de uma “burguesia nacional”, caso do argentino Sergio Bagú, tido por Florestan Fernandes (1981) como um dos maiores intelectuais americanos, ao lado de Caio Prado e Mariátegui.
Ainda que hoje tal visão equivocada (sobre o “nacionalismo” das elites) tenha perdido espaço nas análises teórico-científicas de fins do século XX, contudo, no século XXI, com a decadência dos desgastados regimes neoliberais, ela retomaria sua influência nas políticas de governos social-desenvolvimentistas que, apesar de terem promovido em seus países reformas essenciais e de urgência humanitária, acabaram sendo desbancados – aos primeiros ventos fortes contrários – por seu excesso de confiança nas “boas intenções” de setores menos conservadores da burguesia, com quem se costurou alianças por demais “subalternas”. Com isto, acabou-se por obstaculizar a conscientização de classe e a organização popular necessárias para uma efetiva superação do sistema.
Esse erro histórico já foi acusado por grandes pensadores marxistas, como aqui exposto, mas não chegou a ser levado suficientemente a sério por muitos governantes do campo progressista. Ora, há cerca de uma década esse descuido vem cobrando sua fatura com a miséria das terras e gentes de nossa América.
O problema pode ser resumido por um binômio, de que deriva a situação política frágil que atualmente vivemos:
i) de um lado alianças políticas que, eleitoralmente necessárias, na prática submeteram exageradamente os interesses dos trabalhadores àqueles de parcelas menos reacionárias (mas jamais “nacionais”) das burguesias internas, impossibilitando assim transformações econômicas estruturais de urgência (reformas agrária e urbana, etc);
ii) de outro, o negligente afastamento entre os governos populares e as organizações de trabalhadores do campo e da cidade, bases às quais não se pôde recorrer, consequentemente, quando da traição política das elites.
Como se sabe há muito: cabe observar a história não somente para se pensar o passado, e com isto melhor nos conhecermos, mas para apreender dele lições pertinentes à tarefa urgente de se transformar o presente, reorientando nosso sentido histórico – com vistas à utopia concreta exigida pelo futuro.
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Notas
* Este ensaio (aqui editado em duas partes) é uma versão revista e complementada da metade final do artigo “Pensamento crítico e questão nacional na América Latina do Entre-Guerras”, capítulo do livro A dimensão cultural nos processos de integração entre países da América Latina (Prolam-USP, 2021).
** Paulo Alves Junior é doutor em Sociologia (Unesp) e professor da Unilab (BA). Solange Struwka é doutora em Psicologia Social (USP) e professora da UNIR (RO). Yuri Martins-Fontes é doutor em História Econômica (USP), filósofo e escritor, autor de, entre outros, Marx na América (2018).