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Crônica: De Rabo a Cabo - Por Luis Cosme Pinto

Para aquele leitor apaixonado jornal só prestava se fosse como pão: fresquinho

Créditos: Pixabay
Escrito en OPINIÃO el

Aprendi a ler jornal com meu pai. Edgar folheava o diário e traduzia as manchetes.

- Inflação quer dizer que os preços subiram e o dinheiro de hoje vale menos que o de ontem. Imposto é aquilo que ninguém gosta de pagar. Transamazônica é a estrada que vai cortar a maior floresta do mundo.

A vida é melhor pra quem lê jornal, dizia convicto.

-  A gente sabe se o dia seguinte será de chuva ou de sol, se vai faltar água no bairro, confere a loteria, se informa sobre o mundo. No mínimo, ganha assunto pra conversar com os amigos.

A cada explicação, lia um resumo da notícia para meus irmãos e pra mim. Mas a gente queria mais.

- Por que tem anúncio?

- Porque sustenta o jornal.  

- E turfe, pai? É aquele esporte com prancha?

- Não, com prancha é surfe. Turfe é corrida de cavalo.

- E essa foto do pênalti, como o fotógrafo consegue dar o clique na hora certa?

- A câmera é automática, ele dispara uma sequência e na redação escolhem a que tem a bola na rede.

Meu pai, que não era jornalista, sabia de tudo e a gente tinha certeza que era porque ele lia muito jornal. Assinante de O Globo, se agarrava naquelas páginas e levava todos os cadernos para o único banheiro de casa – azar de quem não entrasse antes. Depois continuava na cozinha, junto com o café da manhã e terminava na sala. Só então penteava o cabelo, esguichava desodorante Avanço nos sovacos e dava o nó da gravata.

Devorava de cabo a rabo, ou melhor, de rabo a cabo, porque começava pelo final, nas páginas do esporte, com os artigos de João Saldanha e Nélson Rodrigues. Depois economia, política. Partia então para o caderno de cultura. Se divertia com as histórias em quadrinhos – Recruta Zero, a preferida. Aí uma nova leitura: as cartas dos leitores, os editoriais e os classificados com oferta de imóveis, conserto de pianos, aluguel de cadeira de rodas. Tinha interesse especial pelos avisos das missas de sétimo dia e velórios.

Dobrava o jornal com carinho e deixava para quem quisesse ler numa revisteira de vime ao lado do sofá da sala. Agora sim estava pronto para o dia.

Só não perdoava que alguém lesse o jornal antes dele. Aí era esculacho e até castigo. Quantas vezes acordávamos mais cedo e, mesmo curiosos para saber o resultado do Fla X Flu ou a escalação do Botafogo, tínhamos que esperar o ritual da leitura.

Ávido para ver o pôster do Flu campeão, meu irmão não resistiu: na ponta dos pés, abriu a porta e pegou o jornal. Viu a foto do time do coração, dobrou o calhamaço e até pediu que a gente conferisse. Concordamos, parecia intacto. Mas quando meu pai acordou e pegou O Globo no corredor do prédio em que morávamos em Vila Isabel avermelhou-se de raiva.

- A página do Esporte está amassada. Quem mexeu no meu jornal?

O medo nos calou. Sem saber quem era o vilão e reconhecendo que seria um exagero qualquer corretivo, bateu a porta com força e foi até a rua comprar um novo exemplar. Para ele existiam dois O Globo: o virgem e o de embrulhar o lixo.

Pelo mesmo motivo quase cortou relações com o vizinho da frente. Djalma, curioso para saber se o filho tinha passado no vestibular, também desvirginou o jornal, que trazia a lista completa dos aprovados. Mais um tolo que achou que meu pai não perceberia. Quase perdeu o amigo.

Minha mãe não ligava pra notícia. Pouco importava se a manchete era de hoje ou da semana passada. Lia jornal velho como chamariz do cochilo depois do almoço. Então mergulhava no horóscopo, coluna social, crítica de cinema. Ajeitava os óculos e dividia com a gente a seção O Bonequinho Viu.

- Quando o bonequinho aplaude o filme é bom. Se aparece reto na cadeira vale a pena. Dormindo, não presta.

Adorava, de quase amar mesmo, as crônicas de Arthur da Távola e de Elsie Lessa. Algumas eram recortadas e guardadas. Meia hora E as pálpebras pesavam, o jornal então se transformava num lençol e ela se escondia embaixo das notícias. A imagem nos assustava porque naquela época, a polícia cobria assim as vítimas de morte violenta. Ela brincava pedindo descanso.

- Meninos, tô bem viva. Mas faz de conta que fui ali e já volto.

Talvez tenha nascido assim o meu amor pelo Jornalismo. Ler a edição de papel ainda é prazer diário. Como meu pai, gosto de sentir que sou o primeiro a sujar as mãos com as manchetes, mesmo que falte alguém para desarrumar as manhãs e as notícias.

*Escrevi esse texto inspirado numa linda história contada pelo jornalista e querido amigo Luiz Fernando Manso, a quem agradeço.

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