O povo judeu é uma nação!
Independente do país ou continente no qual o judeu esteja, ele faz parte dessa nação. Em cada pedacinho do globo, a comunidade judaica tem suas entidades que defendem e cuidam dos seus interesses. Historicamente, esse povo enfrentou e enfrenta muitos desafios de preservação da memória e enfrentamento do antissemitismo. A luta contra o antissemitismo é milenar!
Embora existam vários povos Semitas, como os árabes, o termo antissemitismo é usado em sua maioria para designar o ódio aos judeus. Para enfrentar esses crimes de ódio, primeiro precisamos entender o que eles são. Segundo a International Holocaust Remembrance Alliance, ou em português, Aliança Internacional de Memória do Holocausto, existem vários exemplos de antissemitismo, mas suas principais manifestações são: desumanizar ou demonizar judeus a partir de estereótipos ligados a teorias da conspiração; o mito de que os judeus controlam a mídia, a economia e até mesmo os governos mundiais; ou acusar o povo judeu e o estado de Israel de inventarem ou exagerarem sobre o Holocausto e de se beneficiarem em cima desse genocídio em massa. No Brasil, o antissemitismo é considerado crime de discriminação de raça, cor, etnia e religião, com pena de até 5 anos de prisão. Em 2021, o país aderiu à Aliança Internacional de Memória do Holocausto como país observador. Combater o antissemitismo e toda forma de preconceito é dever do Brasil e dos cidadãos.
Nesse contexto, a juventude judaica tem protagonismo e, ao mesmo tempo, tem a missão de preservar os valores judaicos, para que as mudanças geracionais não afetem o fortalecimento da comunidade, das entidades e da luta contra o antissemitismo. A minha geração é muito especial, porque é a última que tem contato com os últimos sobreviventes do Holocausto. Diante disso, os meus futuros filhos, provavelmente, não terão a oportunidade de ouvi-los contar suas histórias, ou tê-los por perto. Assim, todos nós, jovens judeus, temos um compromisso muito significativo, que é a conservação dessas memórias para os nossos descendentes. Pensando nisso, eu conversei com o presidente executivo da Federação Israelita do Estado do São Paulo (FISESP), Ricardo Berkiensztat, sobre os desafios geracionais dentro da comunidade judaica, o papel da juventude e a memória do Holocausto. Segue um trecho de seu depoimento:
“O Holocausto eu acho que é algo que não tem comparação com absolutamente nada que tenha acontecido na história da humanidade. O Holocausto foi uma fábrica, uma indústria de morte criada pelos nazistas, por Hitler e seus seguidores, que tinha como objetivo a supremacia da raça ariana, e ele tinha como principal inimigo o povo judeu. Então ele criou toda uma estrutura industrial de aniquilar os judeus da Europa porque ele julgava que eles eram os responsáveis pela crise na Alemanha. Ela perdeu a I Guerra Mundial, teve o Plano Marshall, teve uma série de coisas, e ele culpava os judeus pelo insucesso da Alemanha. Isso traz algumas similaridades, não é atual, mas mais contemporâneo quando se busca um bode expiatório para uma crise, naquela ocasião eram judeus. Então nós tivemos a morte de aproximadamente 6 milhões de judeus, mas se a gente pensar num número, isso pode ser muito maior, porque quantos seriam seus descendentes? Então estamos falando de 18, 20 milhões de judeus. E hoje o número de judeus é inferior ao que era em 1939, no começo da II Guerra Mundial, ou seja, não se conseguiu aumentar ou chegar naquele número, porque um terço dos judeus do mundo foram dizimados e seus descendentes, obviamente, filhos, netos acabam se perdendo. E para nós esse é um tema que tem que ser um tema eterno. Lembrar o que foi, o que aconteceu, quais são os motivos que levaram a isso. A aniquilação de um povo, a tentativa de aniquilação de um povo. Então se criou o slogan 'nunca mais' e a gente bate na tecla que 'nunca mais' não é um nunca mais para os judeus, é um nunca mais pra todo mundo. Não podemos mais ter fábricas de morte e ainda temos, infelizmente. Seja na África, ou em outros lugares, ainda se mata em nome de Deus, se mata em nome de outras coisas que a gente não pode permitir. E como o tempo é cruel, essas pessoas que passaram pelo Holocausto estão indo embora, a gente tem uma perda significativa todo ano de sobreviventes do Holocausto por uma idade avançada, que é o normal da vida. E mesmo com eles vivos, já tem gente que fala que o Holocausto nunca aconteceu, os famosos 'negacionistas do Holocausto', a gente já começa a imaginar o que vai acontecer quando nós não tivermos mais as testemunhas oculares da história, pessoas que passaram por isso, que tem o número marcado, que lembram do campo de concentração, enfim, que possam dar em primeira pessoa o que foi que aconteceu. Eu sempre digo que cada história de um sobrevivente dá um livro, um filme, uma novela… porque cada um é um, não é? E todos sofreram demais, muitos deles ficaram muitos anos sem falar, por vários motivos, por trauma, medo, porque queriam pôr uma pedra em cima da história, muitos anos eles ficaram em silêncio e no final da vida começaram a falar até para os seus familiares, era uma coisa que não acontecia. Por isso, eu digo que é fundamental a nova geração estar envolvida porque, assim como na festa que nós passamos agora, a gente diz que temos os costumes e o que passamos de geração em geração. Essa história também nós temos que passar, que é uma história do povo judeu. É uma história que marcou, marca e vai marcar sempre quem nós somos. O estado de Israel hoje existe provavelmente porque nós tivemos um Holocausto. Essas milhões de vítimas não foram em vão. Então nós hoje temos um estado para nos defender. Hoje nós temos um país que olha pelos judeus do mundo. Que é um país pequenininho, mas forte e que nos enche de orgulho. Então temos que levar em consideração o que passou, para que isso não volte e o nosso papel enquanto educadores, enquanto ativistas comunitários, é envolver essa nova geração de alguma forma, porque eles são uma continuidade. Eu fui à minha época de continuidade, mas eu tive contato com os sobreviventes, era muito próximo de vários. Eu viajei pra Polônia três vezes, nos campos de concentração, e na volta tinha uma relação muito de avô para neto com vários sobreviventes. Então até um deles que era muito conhecido, que faleceu há alguns anos, que era o que mais falava, era o porta-voz dos sobreviventes, ele falou para mim que eu era a descendência dele.”
A memória do Holocausto e a história do povo judeu se tornam uma parte importante na construção da luta contra o antissemitismo que está sendo protagonizada pela juventude judaica. Para compreender o papel da memória judaica nessa luta, eu conversei com o Daniel Douek, Diretor Executivo do Instituto Brasil Israel:
“Memória é uma elaboração sobre o passado no presente, e de acordo com demandas do tempo presente. Assim, memória é justamente dar utilidade ao passado, fazer com que o passado seja útil no aqui e agora. E não é única: em geral, é atravessada por disputas. Assim, nem toda a memória cumpre o propósito de contribuir para o enfrentamento do antissemitismo. Na minha visão, uma memória comprometida com o enfrentamento do antissemitismo e de todas as formas de discriminação deve incluir as noções de que:
1. Genocídio é obra humana.
O Holocausto não é um evento tão excepcional a ponto de tornar-se inconcebível. Não foram 'monstros', esses que existem apenas na fantasia, os responsáveis pela tragédia. O Holocausto é fruto da ação dos homens e, nesse sentido, revela o que somos capazes se não houver atenção contínua.
2. Nazismo não começou com Auschwitz. É preciso historicizar o passado, compreendendo os processos que levaram à tragédia. Entender os sinais que preparam o terreno a determinada realidade permite agir enquanto ainda é tempo para evitá-la".
Um momento marcante na luta contra o antissemitismo no Brasil de hoje:
Tupirani da Hora Lores, líder da igreja Pentecostal Geração Jesus Cristo, foi condenado a 18 anos e meio de prisão por crimes de racismo e ódio contra judeus em uma ação movida pela Confederação Israelita do Brasil, CONIB, e pela Federação Israelita do Rio de Janeiro, Fierj. “Uma sentença histórica na luta contra o antissemitismo. É a maior pena aplicada no Brasil por esse tipo de crime, o que haverá de ajudar a inibir essa prática odiosa”, afirmou Ricardo Sidi, advogado criminal da CONIB, que atuou como assistente de acusação. “Foi uma pena elevada, mas merecida. Em momento algum ele se retratou. Pelo contrário”, disse o diretor de segurança da CONIB, advogado Octávio Aronis. “Essa sentença demonstra o endurecimento da Justiça com os casos de discurso de ódio, que têm crescido de forma exponencial, especialmente em face da comunidade judaica. O caso é gravíssimo e a reprimenda recebida pelo réu é proporcional à sua periculosidade”, acrescentou a também advogada e diretora da CONIB, Andrea Vainer. Ao réu ainda cabe recurso.
Lores, que pregava contra judeus e outras minorias religiosas, foi preso na Operação Rófesh, coordenada pelo Grupo de Repressão a Crimes Cibernéticos, que fez cumprir mandados expedidos pela 8ª Vara Federal Criminal.
Na sentença de quinta-feira, 30 de junho, a juíza Valéria Caldi Magalhães ressalta que "o réu se valeu de sua condição de pastor de uma comunidade religiosa para a prática do crime, o que incrementa o potencial de induzir os seguidores a agir de modo similar".
A juíza federal acrescenta que "no que toca à conduta social, os autos demonstraram que o réu mantém comportamento ostensivo de afronta às instituições públicas".
Um caso de antissemitismo no Brasil colonial
No fim da ocupação holandesa no Brasil cerca de 600 judeus foram expulsos pelos portugueses. Eles deixaram a cidade de Recife, em Pernambuco, e partiram a bordo do navio Valk em busca de sua terra natal na Holanda, onde o judaísmo era permitido por conta do calvinismo, que foi uma versão mais liberal do cristianismo. Eles estavam no Brasil há mais de duas décadas, desde quando o Nordeste brasileiro fora conquistado pelos holandeses.
No caminho para a terra natal, o navio se desviou do caminho por conta de uma tempestade, acabou sendo saqueado por piratas e depois resgatado por uma fragata francesa que os levou para a Jamaica, que até então era uma colônia da Espanha. Lá foram presos pela Inquisição espanhola, mas foram libertos após a intervenção do governo holandês. Por problemas financeiros e com a pressa de sair da Jamaica eles então foram para a colônia holandesa mais próxima, Nova Amsterdã, atual Nova York.
Nesse novo local eles formaram a primeira comunidade judaica da América do Norte e ajudaram com o desenvolvimento da cidade, tanto que Nova York é a segunda cidade com o maior número de judeus no mundo, atrás apenas de Tel Aviv, em Israel.
Voltando um pouco, a imigração judaica para o Brasil é documentada desde a época do descobrimento, com os “cristãos novos”, judeus obrigados a se converter ao cristianismo na perseguição da Igreja Católica na Península Ibérica. Porém, apenas em fevereiro de 1630, na ocupação holandesa, que os judeus dos Países Baixos chegaram ao Brasil, os cristãos novos saíram de Portugal e foram para a Holanda, pois era um país protestante que abriu suas portas para outras religiões quando se tornou independente da Espanha.
Os judeus que vieram ao Brasil eram descendentes dos “cristãos novos” que se mudaram para a Holanda um século depois da conversão forçada pela Inquisição. Muitos deles integravam a Companhia das Índias Orientais, uma empresa de mercadores fundada em 1602 e cujo objetivo era cortar os competidores europeus daquela rota comercial.
No Recife, eles construíram escolas, sinagogas e um cemitério, enriquecendo a cultura da região. A primeira sinagoga das Américas, Kahal Zur Israel, foi fundada ali. Os números de judeus que viviam no país durante o período holandês variam muito, entre 350 e 1.450, o que é muito expressivo se considerarmos que viviam na região cerca de 10 mil pessoas.
Maurício de Nassau era um grande humanista, ele tinha o intuito de transformar Recife na “capital das Américas”, investiu em grandes reformas, e a transformou em uma cidade cosmopolita, porém, ele foi acusado de improbidade administrativa e forçado a voltar à Europa em 1644. Após o fim de sua administração, a Holanda exigiu a liquidação das dívidas dos senhores de engenho inadimplentes, o que levou à Insurreição Pernambucana e, mais tarde, resultaria na expulsão dos holandeses do Brasil, em 1654.
Os judeus que já haviam criado vínculos com o país não tiveram alternativa e se viram obrigados a sair. Francisco Barreto de Menezes, o até então governador da região, deu três meses para que eles se retirassem. Alguns fugiram para o Sertão, outros decidiram voltar à Holanda.
Os Registros populacionais da Prefeitura de Nova York mostram que eles chegaram em setembro de 1654, naquele tempo a então colônia holandesa não era muito grande e era governada por Peter Stuyvesant, um calvinista fanático que não queria que os recém-chegados ficassem ali. Com certa dificuldade os 23 judeus sobreviveram por meio do comércio, que logo cresceu, atraindo mais judeus para a cidade. Depois da guerra de independência dos Estados Unidos, seus descendentes conseguiram a cidadania americana. Um deles, Benjamin Mendes, foi o fundador da Bolsa de Valores de Nova York.
Bibliografia
Daniela LEVY. De Recife para Manhattan: Os Judeus na nova formação de Nova York Editora Planeta, 2018.
Ronaldo VAINFAS. Jerusalém colonial: judeus portugueses no Brasil holandês Editora Civilização Brasileira, 2010.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum